Definitivamente a primeira dama da noite soteropolitana nos anos 90, a empresária May Matos hoje leva uma vida discreta, longe dos holofotes e das grandes badalações. Morando da Ilha de Itaparica, poucos podem imaginar a revolução que ela já causou em Salvador e no mundo. Foi, antes de tudo, uma grande empreendedora, mas também acolhedora e visionária. Nessa entrevista ao Dois Terços ela conta um pouco de sua trajetória e tudo o que precisou superar para ser respeitada e ter o seu lugar ao sol.
DOIS TERÇOS: May Matos, você é uma das pioneiras no entretenimento para o público LGBTQIAPN+ aqui em Salvador. Quando você assumiu a Boite Holmes New Look Bar já havia outras casas noturnas voltada para esse público por aqui, mas você inovou. Para isso, antes você passou por alguns países, observou tendências, ou seja, foi aprimorando seu lado empreendedora e visionária .Estou certo?
MAY MATOS: Sim, quando assumi a noite soteropolitana com a Holmes New Look Bar já havia noite gay na cidade. Lembro, por exemplo do Banana República, Boite Tropical e várias outras casas na Avenida Carlos Gomes. Realmente minha vida fora do país foi importante na tomada de algumas decisões. Cansada da noite Suíça, trabalhando oito meses por ano, me cansei dessas idas e vindas, resolvi e pousar na minha Bahia, para tentar sobreviver aqui. Eu comecei em Paris dançando em uma Boite Mix em 1976 chamava Le Go Go Boy. O espaço tornou-se famoso porque eu animava a noite dançando com um tapa sex. Até então, eu não tinha feito transformação, ou seja, qualquer intervenção no meu corpo. Eu me dedicava muito ao trabalho, inclusive, estudava dança moderna e jazz com os melhores professores de Paris, incluindo Lannie Dalle famoso coreógrafo do Dzi Crocrettes.
DT: Para quem não conhece, o Dzi Croquettes foi um grupo de teatro que usava a irreverência para criticar a ditadura Militar. Qual foi a importância de Lannie Dale em sua vida?
MM: Fundamental. Eu estava em Londres e resolvi ir a Paris. Chegando lá, sem dinheiro, sem ter onde morar fui em busca de oportunidades para levar minha vida com dignidade e correr atrás dos meus sonhos. Para você ter ideia, eu passei muito tempo sem vir ao Brasil por falta de dinheiro. Bom, daí chego em Paris conheci Lannie que estava preparando um espetáculo para um cabaré Francês. Pedi ajuda a ele e ele me lançou, não em seu espetáculo, mas em uma discoteca de Go Go Boys. Foi sucesso absoluto.
DT: Então, triunfalmente, você começou em Paris?
MM: Pois é, Carlos: foi em Paris onde artisticamente tudo começou. Eu já sabia o que era um travesti porque quando eu morava em Salvador assistia Valéria na Boite Clock. Eu residia em uma república de estudantes e era a responsável pelo cardápio, pois sempre fui boa cozinheira. Sempre fui muito séria, feminina, mas nunca fui de sair jogando plumas.
DT: Seu primeiro trabalho, então, foi nessa república?
MM: Não! Eu ficava na República, mas estudava, fazia curso técnico em Administração. Meu primeiro trabalho foi no primeiro Hotel construído no bairro de Ondina, o Ondina Praia Hotel. Ali já comecei a receber pessoas de todos os países. Era uma loucura, eu só falava Português e conseguia me comunicar com todo mundo. O gerente ficava apavorado, mas sabia que eu dava conta de tudo. Fiquei lá por cerca de três anos e depois resolvi partir para a Europa. Fiquei alguns anos estudando dança, cuidando de criança… mas o que eu queria mesmo era ser uma vedete, achava que seria fácil, mas não foi.
DT: Antes de Paris, onde você havia fixado residência?
MM: Eu estava em Londres, aí vem a história de ir a Paris, foi quando encontrei, como já falei, Lannie Dalle e fui logo dizendo: preciso trabalhar, não tenho dinheiro e soube que tem uma boate selecionando meninos para dançar, me ajude. Aí ele me vestiu de mulher pela primeira vez: me botou um baby doll, uma meia soquete peruana, umas orquídeas na cabeça e eu aquela coisa que ninguém sabia o que era ou o que não era (risos). Me colocaram dançando em cima e um “queijo” me deixaram lá e foram embora, e eu aflita. Recordo que no primeiro dia eu ali esperando, chega uma senhora, me dá uma rosa e diz: já tem clientela, vá dançar. Só sei que quando deu meia noite a boate estava fervendo e eu dançando lá em cima. Era um teste, e chegou um momento que eu quis conversar com o dono da boate. Sabe o que ele me disse? Você com essa bundinha redondinha está contratada para dançar todos os dias. E eu fiquei por lá, ganhando direitinho e fazendo o que queria fazer.
DT: E Lannie Dalle, não foi mais te ver?
MM: Ele voltou para o Rio de Janeiro, passou um período e retornou a Paris. Foi logo na boate me ver e disse: você tem que sair dessa boate porque eu vou preparar você para fazer a vida de Madame Satã. Eu nem sabia do que se tratava, mas larguei tudo e fui com Lennie para Ibiza, de férias. Claro, tudo por conta dele, se ele me deixasse, eu iria ficar na lona novamente….e eu já era famosa em Paris, talvez se eu não tivesse saído, seria outra pessoa hoje, mas sou assim: vou onde o vento me levar e onde Deus permite.
DT: Mas o espetáculo Madame Satã?
MM: Não deu certo. E olha eu desempregada novamente? Ai chegu a Paris e encontro o dançarino Ciro Barcellos, que todos conheciam de uma das aberturas do programa Fantástico (Globo). Ele já sabia de mim através de Lennie, ficamos amigos e trabalhamos juntos por algum tempo.
DT: Bom, mas até então você se montava para fazer shows, mas fora deles continuava “durinha”?
MM: Na boite Le Go Go Boy eu não precisava me montar para fazer shows. Só depois, na boite de transformista tínhamos que nos montar , eu e Ciro Barcelos. Ele fazia Carmem Miranda e eu, Dorival Caymmi.
DT: É verdade que nessa época você foi convidada e aceitou fazer um filme erótico? Começou aí uma carreira de atriz também?
MM: É verdade. Recebei o convite em Barcelona, eu já havia saído de Paris para a Espanha e aceitei, mas foi apenas para pagar as minhas contas. Depois disso arranjei um empresário que, de cara, me levou para trabalhar em Palma de Maiorca, também na Espanha. No primeiro dia, dancei e sai para comemorar. Resultado: cai, bati a cabeça e me falaram que eu estava com Hepatite B. Eu ficava em um hotel, fiquei um mês hospedada lá, todo dia eu imaginava quem iria pagar a conta, pois eu não estava trabalhando.
DT: Depois de um mês você começa a trabalhar novamente em Palma de Maiorca?
MM: Não rxatamente, mas chegou um senhor, que não sei exatamente quem era, pagou a conta do mês que fiquei no hotel e me pediu que ficasse trabalhando na cidade por mais um mês, não era no hotel, era em uma boate que tinha na cidade. Ele disse que eu poderia ficar e trabalhar para ter um dinheiro a mais e voltar para Barcelona. Fiquei mais um mês e então eu e uma amiga brasileira sentimos que ali não dava mais para se trabalhar. Ela propôs ir para a Alemanha. Eu já falava inglês, francês …ela só falava português, ai acertamos: ela pagava minhas despesas e eu ajudava na comunicação. Passamos um período circulando por algumas cidades da Alemanha. Resolvemos ficar por lá, minha amiga com o intuito de arranjar um paquerinha, casar e fui tentar trabalhar em um teatro que era vizinho ao hotel onde nos hospedamos, fui de rapaz. Para minha surpresa, o dono do local já sabia da minha presença na cidade e disse “tudo bem, mas você está com outra pessoa aí. Eu gostaria que os dois trabalhassem aqui, comigo”. No outro dia voltei com ela, mas voltei montada e ouvi: aquele boy que veio ontem, cadê? Respondi: sou eu! Daí já entrei no clima, fui para o salão…nesse local, lembro que fora eu e minha amiga, tinha somente mais um homem que era brasileiro, os demais, a maioria venezuelanos. Isso foi uma fase, um recorte da minha vida. Meu sonho estava naquela boite, dois meses ou três depois eu já estava animada para me transformar.
DT: Você já se transformou ai então?
MM: Como te falei, meu patrão me recebeu muito bem, foi com minha cara e ficamos amigos. Cerca de três meses despois ele me transformou totalmente. Operação do nariz, transformação de beleza e tudo mais. Graças a Deus foi graças a ele que me transformei em uma vedete, agradeço até hoje. Depois, por conta de uma decepção amorosa, resolvi largar tudo e deixar a Alemanha, onde já tinha autorização para trabalhar e voltei para a França, como ilegal. Da França voltei para a Espanha, depois para Marrocos e resolvi ir para a Suiça. Já estava cansada, resolvi me fixar por lá.
DT: Então voltou a dançar?
MM: Arranjei um excelente empresário que praticamente já fechava oito meses de trabalho para mim com antecedência. Mas tinha um detalhe: nessa época não era boate gay, mas hétero. Boate de Streep Tease. Eu fazia um trabalho super feminino e era sucesso …
DT: Levando em consideração o tempo que você esteve fora do Brasil, nunca voltou para ver sua família?
MM: Demorei muito, faltava dinheiro, Carlos. Mais ou menos 1983, enfim vim ao Brasil rever minha família. Já não aguentava mais a saudade.
DT: Você saiu daqui uma pessoa e voltou outra, transformada. Como sua família te recebeu?
MM: Fui muito bem recebida, mas antes eu impus, falei que agora eu tinha um corpo feminino, me vestia de mulher e que não queria ninguém me tratando pelo masculino. Falei: essa é minha condição, se quiserem que eu volte, será assim. Foi uma reação geral: “nem pense nisso, queremos é te ver, estamos com saudades…trataremos você como você quiser”, logo respondi “quero que me tratem como deve ser e não como eu quero”. Fui muito bem recebida, para minha felicidade …
DT: Mas precisava voltar à Europa…
MM: Sim, voltei. Mas trabalhava muito. Era estressante e só tinha uma folga por semana. Lá pelos anos 90, acho que 93 eu disse: não estou aguentando mais. Juntei os trocadinhos que ganhei, comprei uma casa na ilha de Itaparica. Não queria saber mais da noite, não queria saber do mundo, queria era descansar.
DT: Mas como surge a Boite Holmes em sua vida?
MM: Pois é, um dia uns gays amigos meus me levam na Boate Holmes. Até então eu era uma desconhecida, ninguém sabia quem eu era, passaram a me conhecer quando eu comprei a Holmes. Foi engraçado, pois um rapaz veio e disse que a noite Gay em Salvador estava um desastre, a boite caindo aos pedaços e ele viu em mim a pessoa certa para essa revitalização. Eu logo disse que não tinha condições de comprar uma boate aqui em Salvador, mas ele insistiu, disse que o proprietário faria um bom valor, enfim …
DT: Comprou de cara?
MM: Na minha vida as coisas acontecem dessa forma. A oferta foi de 50 mil dólares, e eu não tinha. Ele insistiu tanto, que facilitava pagamento, que eu teria um bom retorno e logo pagaria o valor devido. Enfim, comprei. Peguei toda minha reserva da Suiça, fiquei sem dinheiro até para fazer uma reforma na boate, imagine aí?
DT: E como fez?
MM: Quem tem amigo tem tudo. Chamei uma amigo meu que era artista plástico que já veio cheio de ideias, trocar estofados, trocar pintura de parede e tudo para que eu pagasse depois …demos uma nova cara a boate e reabrimos. Ai os gays chegavam “May, você é a dona?” e eu preferia me passar por empregada, promoter …eu era dona do ponto, mas pagava aluguel caro na época.
DT: E as atrações para a boate, pois eram comentadas até fora da Bahia?
MM: Primeiro eu conversei com July de Glamour, que era talentosíssimo e já tinha um show de transformistas pronto. Propus que ele levasse esse show para a boite… era uma época decadente onde os artistas ou faziam shows de graça ou ganhavam pouco. July me ajudou muito, dirigiu o show de transformismo … lembro que certa vez chegou uma rapaz tímido dizendo que queria se apresentar. Como sei da importância das oportunidades e tenho olho clinico para talentos, disse “Claro”. Ali surgia um dos artistas mais talentosos da noite soteropolitana, nossa querida Bagagerye Spielberg. Dei total liberdade a ele, e valeu a pena, ele foi meu carro chefe na Boate Holmes.
DT: E Bagagerye foi a sensação da época, ouso dizer que ainda é sensação onde quer que se apresente. Teve o A Meia Noite se Improvisa, no Teatro Vila Velha, teve o Programa da Regina Casé…
MM: Isso. Não vou dizer “fui eu” a responsável, mas tudo é consequência, ela construiu uma bela história. Depois vieram outros: Dion, Andeza Lamarc, teve o show homenageando Madonna … meu amigo, daqui a pouco era tanto artista que eu ficava louca.
DT: E as artistas que vinham de fora, as famosas…
MM: Sim, lá se apresentaram artistas como Ângela Roro, Divina Valéria, Rogéria…
DT: E outras boates não sobrevivendo …
MM: Sim, muitas abriram, fecharam e a Holmes ali, sobrevivendo com seu público fiel…
DT: Não vem ao caso, mas poderíamos citar inúmeros nomes de boites, mas sua presença ali na Holmes recebendo os clientes era fundamental, um diferencial.
MM: Sim, as pessoas chegavam e já me encontravam na porta, elegante, perfumada, dando boas vindas. Eu quando inaugurei a boate já disse: não quero aqui uma boate gay, mas um ambiente onde possamos acolher todos os públicos. Todos eram bem vindos, inclusive os simpatizantes. Era uma boate que posso chamar de “mix”, a mistura era grande e todos se divertiam. Ai surgiu a história do GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes), que casou direitinho com minha proposta. Casais da alta sociedade frequentavam a Holmes, isso me alegrava muito.
DT: Foi uma época de efervescência na cidade, não é, May?
MM: Ah! Eu dava tudo de mim para que isso acontecesse. Tinha música ao vivo, show de transformistas… trouxe minha experiência da Europa para a Bahia.
DT: Sua contribuição para a história do mundo LGBTQIAPN+ em Salvador foi fundamental para o que vemos hoje. Concorda?
MM: Sim, concordo. E não foi nada programado, era eu ali, meu jeito de ser, de receber, de fazer a gestão da boate. Olha, vou te contar uma coisa: a boate estava sempre lotada e nunca teve uma briga. Eu só saia de lá depois das 8h, pois tinha cliente que morava longe e ficava esperando o horário dos seus ônibus.
DT: E seus funcionários, você tinha essa questão de escolher o gay?
MM: Eu não escolhia pelo gênero. Lembro que botei dois porteiros héteros e fui logo dizendo: aqui todos são iguais, não quero que maltrate ninguém. Se houver algum problema, trate com delicadeza ou me chame que resolvemos juntos.
DT: Já teve algum problema com alguma travesti, não necessariamente uma briga mas alguma querendo fazer o que bem queria no local?
MM: Lembro que uma vez que uma travesti que trabalhava na rua veio com uma roupa inadequada para a boate. Veio como estava na rua. Conversei delicadamente com ela, que não gostou, deu uma rabanada, foi embora mas entendeu. Pouco depois voltou, colocou uma calça e se divertiu a noite inteira …
DT: E preconceito, May, antes e depois da Holmes, já sofreu muito?
MM: Quando eu me propus a fazer a transformação, pensei: quero me transformar, mas não vou abrir mão de ser feminina. Nunca fui descriminada na vida, desde a época que morei na república …. até com meus primos já fui me divertir em bordel, eu dava respeito e recebia o mesmo de volta. Olha, lembrando aqui que ainda criança eu quando ia passar em frente aos bofes passava bem durinha …. não queria ouvir chacota nem risadinhas. Depois que eu passava, ficava mais molinha (risos). O comportamento é tudo!
DT: Você continua morando na Ilha. Como é sua vida aí?
MM: Moro aqui há quase 40 anos e sempre fui respeitada. Isso porque eu sempre soube andar na minha, sou tranquila, amiga de todos …
DT: May, sua história dá um livro, um documentário, um filme …já pensou nisso?
MM: Olha Carlos, acho que são tantas histórias que deixar isso registrado seria uma ótima ideia. Os anos 90 ficaram eternizados na memória dos frequentadores da Boite Holmes Look Bar, fora minhas histórias paralelas. Seria bom deixar isso escrito….
DT: Eu topo a empreitada ….
MM: Pois é, vamos conversar. Tenho muitas histórias …