“Ser chamada de machona é elogio para quem trafega livremente entre os gêneros masculino e feminino, social e historicamente cindidos. Ninguém conseguirá me ofender me chamando por nomes que significam apenas o meu amor por outra mulher” trecho do texto Ninguém Vai me Ofender de Vange Leonel para a Revista da Folha
Quem não lembra dos versos “Calada noite preta/ Noite pretaaa…”, sucesso absoluto nas rádios de todo o Brasil e abertura da novela Vamp (Rede Globo- 1991), a bela voz era de Maria Evangelina Leonel Gandolfo ou simplesmente Vange Leonel, seu nome artístico. A artista nos deixou cedo, em 2014, aos 51 anos no auge de sua carreira, deixando produções impecáveis e uma lacuna na nossa cultura, pois era uma artista inquieta, capaz de se aventurar e ousar por vários campos das artes. Cantora, atriz, compositora, escritora e ativista LGBTQIAPN+, Vange assumiu sua sexualidade sem medo de retaliações nem de perder o sucesso que havia conquistado.
Mas a história de Vange Leonel vem de alguns anos antes de Vamp fazer sucesso com Cláudia Ohana no papel da vampira Natasha. O primeiro trabalho fonográfico da artista foi em 1987 como vocalista da banda de rock Nau, lançado pela gravadora CBS com o mesmo nome da banda. Ainda com a Nau participou de uma coletânea lançada pelo icônico selo Baratos Afins chamado Não São Paulo II.
Sua estreia em carreira solo veio em 1991, quando lançou pela Sony Music o álbum Vange. O trabalho dava início a sua parceria com a jornalista Cilmara Bedaque, com quem foi casada por 28 anos. Noite Preta, inclusive, foi uma das primeiras parcerias da dupla. Com essa música alcançou os primeiros lugares de sucesso em todo o Brasil e tornou-se presença constante em programas de TV. Verdadeiramente uma artista pop. Na mesma época, participou da coletânea O início, o Fim e o Meio, também lançado pela Sony Music, em homenagem a Raul Seixas. No ano seguinte, 1992, recebe o Prêmio Sharp de Música (atual Prêmio de Música Brasileira) como revelação pop/rock.
Em 1995, deixa a Sony Music e lança o álbum Vermelho pela gravadora independente Medusa Rock. Vange já dava sinais que seu trabalho não era puro entretenimento, tinha um propósito e que ela queria bem mais que ter uma música tocando nas rádios ou estar na TV, não era a arte pela arte: era a arte com propósitos. No mesmo ano assumiu publicamente sua sexualidade, o que não era novidade entre amigos e artistas, ela apenas retomava a militância. Em 1981, bem antes da Nau, havia sido vocalista da banda LF – Lésbico Feminista, grupo formado somente por lésbicas.
A partir do momento que assumiu publicamente sua sexualidade, a artista virou referência para o público LGBTQIAPN+. Além de continuar com seu trabalho como cantora, também foi colunista da Revista Sui Generis, publicação mensal dirigida ao “público gay”, como era conhecida. Escreveu também para a coluna Bolacha Ilustrada, do site Mix Brasil, além de assinar quinzenalmente a coluna GLS da Revista da Folha, encarte do Jornal Folha de São Paulo que saia aos domingos.
Como atriz, estreou em 2000 com o espetáculo As Sereias de Rive Gauche, com direção de Regina Galdino e seis anos depois, participou de Joana Evangelista, peça do grupo teatral Os Satyros. A primeira tinha como tema central o lesbianismo e a segunda, o aborto. Temas extremamente polêmicos para a época.
Vange Leonel também se aventurou no campo das letras e lançou publicações direcionadas ao público LGBTQIAPN+. Sua primeira publicação foi Lésbicas (Ed. Velocipede – 1991), um livro dirigido ao público adolescente, depois vieram Grrrls – Garotas Iradas (Ed. GLS – 2001), uma compilação dos textos publicadas na Sui Generis, As Sereias de River Gauche (Ed. Brasiliense – 2002), com o texto integral da peça e Balada para Meninas Perdidas (Ed. GLS – 2003), seu primeiro livro de ficção, claro, um romance LGBT.
Artistas como Vange Leonel, vão muito além do trabalho que realizam: elas são militantes pela atitude e pela coragem de ser, de dizerem que estão no mundo com um objetivo. Salve Vange Leonel, que nos deixou ainda com tanto a contribuir.
“Não importa se somos poucos
E não precisamos mentir não
Esse mundo vai nos ver brincar
Esse mundo vai nos ver sorrir
Esse mundo vai nos ver cantar
Esse mundo vai ouvir dizer
Esse mundo vai nos ver brincar
Esse mundo vai nos ver sorrir
Esse mundo vai nos ver cantar
Esse mundo, esse mundo”
Esse Mundo (Cilmara Bedaque e Vange Leonel)
Carlos Leal
Jornalista formado pela Universidade Tiradentes, Especialista em Marketing Digital, autor do livro infanto-juvenil Histórias de Dona Miúda: a Raínha do Forró (Ed.Pinaúna), co-autor do livro Cem Anos de Dorival Caymmi: panoramas diversos, em parceria com a Professora Dra. Marilda Santanna. Eventualmente colabora com artigos para o Dois Terços , jornal A Tarde e escreve duas biografias: da cantora alagoana Clemilda e da sambista baiana Claudete Macêdo.