A tendência de aumento das novas infecções por HIV no Brasil veio à tona recentemente com a divulgação de um relatório da Unaids, programa da Nações Unidas sobre a doença. O levantamento constatou que, globalmente, o número anual de novos casos caiu 27,5% entre 2005 e 2013, enquanto para o Brasil foi apontado um crescimento de 11,8%.
Segundo especialistas ouvidos pelo G1, a diferença do país em relação à tendência mundial, que tem as infecções em queda, pode ter várias explicações. Uma delas é o fato de o Brasil estar em uma fase diferente da epidemia em comparação a outras regiões, além da carência de novas estratégias de prevenção.
“Houve um impacto grande por causa da introdução do tratamento em países com prevalência muito superior ao Brasil (como os da África). Eles experimentaram nos últimos anos a queda que o Brasil apresentou no fim da década de 1990”, diz a infectologista e pesquisadora da Unicamp Mônica Jacques de Moraes
Outro problema, na opinião dos especialistas, é a falta de novas estratégias de prevenção que possam ir além do incentivo ao uso de preservativos. Uma alternativa a ser discutida é o uso da profilaxia pré-exposição (PrEP), quando pessoas com comportamentos de risco passam a usar os medicamentos antirretrovirais como forma de prevenção.
O Ministério da Saúde anunciou, em dezembro do ano passado, um projeto-piloto para testar a estratégia de PrEP no Rio Grande do Sul. A assessoria de imprensa da pasta afirmou não ter informações sobre o andamento ou os resultados do projeto até o momento.
Atualmente, o HIV está presente em todos os setores da sociedade brasileira. Os heterossexuais respondem pela maioria dos novos casos e tem havido uma feminização da epidemia. Em 2012 (de quando são os dados mais recentes), as mulheres responderam por 37,7% dos novos casos no país e 52% dos homens que contraíram HIV por via sexual eram heterossexuais.
O G1 conversou com pessoas de diferentes perfis que vivem com HIV no Brasil para saber o que pensam sobre o aumento da taxa de detecção que o país enfrenta. Elas contaram ainda sobre os principais desafios enfrentados hoje pelos soropositivos, mais de 30 anos depois do início da epidemia de HIV.
Diego Tinha 18 anos quando recebeu o diagnóstico de HIV. Na época, seu parceiro descobriu a infecção em um estágio avançado, quando a carga viral já estava muito alta. Ele precisou ser internado e Diego foi convidado a fazer o teste: o resultado deu positivo.
“A gente não espera. O sentimento deixa as pessoas muito vulneráveis, a gente quer agradar, fazer concessões e satisfazer o companheiro.” Ele conta que “a ficha só caiu” sobre seu diagnóstico quando levou para casa o primeiro frasco de remédios, 12 dias depois de receber o resultado do teste.
“Para mim, o que foi muito ruim no início foi ver meu parceiro internado e outras pessoas em situações parecidas.” Muito debilitado, seu companheiro morreu depois de três meses de internação. Diego conta que preferiu esperar algum tempo antes de contar para a família e para os amigos sobre a infecção.
“Fui primeiro estruturando o conceito de viver com HIV na cabeça, me adaptei à medicação, fiz reeducação alimentar”, conta. A princípio, a família ficou em choque. “Mas a gente resolveu tudo com diálogo, o tempo contribui muito para as pessoas assimilarem a nova realidade.”
O jovem, que vive em Juiz de Fora (MG) e é assessor do Fórum Consultivo de Juventude da Unaids, opina que, para as campanhas atingirem os jovens, devem usar uma linguagem diferente, recorrendo a redes sociais e aplicativos que dialoguem melhor com a juventude. “As campanhas não estão atingindo os jovens, que banalizam a questão do HIV. Acham que está distante. Não acham que está na pessoa ao seu lado, na pessoa com quem está flertando, na pessoa que conheceu na balada.”
Em 1986, quando se começava a falar de Aids no Brasil, Magali, então com 22 anos, foi doar sangue para sua mãe, que faria uma cirurgia. O laboratório a chamou para um segundo teste, em que foi constatada a infecção por HIV. “Eu usava drogas quando jovem. Éramos uma turma de 30, 40 jovens inconsequentes. As pessoas não se cuidaram e foram adoecendo.” Poucos estão vivos até hoje, segundo ela.
Magali, que é aposentada e vive em Mongaguá (SP), lembra que, naquela época, a doença estava começando a aparecer principalmente em homens homossexuais e só depois passou a ser associada aos usuários de drogas. “Naqueles anos, a Aids era conhecida como uma doença que matava em três meses. Nos próximos três meses depois do diagnóstico, morri todo dia um pouco. Depois fui me conscientizando e vivendo. Nunca deixei de me cuidar e de colher os exames.”
Entre seus médicos, ela é considerada um caso raro, pois só precisou começar o tratamento com antirretrovirais há dois anos. Antes disso, os níveis do vírus em seu organismo eram muito baixos. Magali, hoje aposentada, se casou e tem duas filhas, que não herdaram o vírus. “Depois do coquetel, as pessoas ficaram com a impressão de que Aids é como uma doença crônica. Não é verdade. O coquetel traz efeitos colaterais graves e a pessoa fica vulnerável a outras doenças. As pessoas começaram a ficar desleixadas com a prevenção.”
Rodrigo visitou dois clínicos gerais quando começou a ter diarreia e manchas pelo corpo. Eles receitaram antibióticos e antialérgicos, que não resolveram o problema. Pesquisando os sintomas pela internet, desconfiou que estivesse com sífilis. Resolveu, então, ir a um Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA). Lá, descobriu que não estava só com sífilis, mas também com HIV.
Para o jovem homossexual que vive em São Paulo, o aumento dos novos casos em jovens tem a ver com a iniciação sexual cada vez mais precoce. “Tem sempre aquele pensamento: nunca vai acontecer comigo. Acontece com o vizinho, mas não comigo. E com esse pensamento, vão se descuidando. E também pelo desconforto de usar a camisinha. Com a camisinha, não é a mesma coisa.”
Hoje, depois de ter tratado a sífilis, já começou a tomar os antirretrovirais, mas esconde os remédios da família, com quem mora. Só os amigos mais próximos sabem do diagnóstico. “No primeiro dia, chorei muito, parecia que o mundo ia acabar ali. Mas conversei com amigos, que me deram um super apoio. Aí vim para a casa, dormi e no outro dia acordei e pensei: quer saber, agora vamos tocar a vida.” Atualmente desempregado, Rodrigo planeja cursar jornalismo.
Beto foi diagnosticado em julho de 1989, tendo contraído o vírus de seu então namorado. “O amor é uma grande armadilha, é a maior vulnerabilidade”, diz. Contar para a família, segundo ele, foi o mais difícil. “Quando a gente assume, naturalmente vai ter uma perda. Tem gente que vai rejeitar e se afastar. Mas é um alívio de duas toneladas sobre as costas, a sensação de liberdade é indescritível.”
Ele conta que o preconceito contra as pessoas com HIV, na época, tinha outra dimensão. “Trabalhava em um banco e me licenciei. Fui fazer a segunda perícia em São Paulo. Já estava me sentindo um nada e, quando cheguei para cumprimentar o médico, ele apontou que eu deveria ficar atrás de uma linha amarela, a 2,5 metros dele.”
Ao longo desses 25 anos, Beto, que é aposentado e vive em São Vicente (SP), chegou a pesar 34 quilos, teve 3 AVCs, dois cânceres, precisou colocar duas próteses no quadril e, ao todo, passou por 23 cirurgias. “Descobrir o HIV é uma coisa horrorosa, mas pode produzir uma coisa maravilhosa. Consegui extrair frutos muito superiores às dificuldades. Eu era muito individualista e o diagnóstico me forçou a mudar de vida.”
Para Felipe, o diagnóstico do HIV veio de surpresa, no primeiro check-up geral que fez, aos 26 anos de idade. O jovem publicitário, que é heterossexual e vive em São Paulo, diz que foi difícil, mas contou sobre o resultado para os pais e para alguns amigos, que sempre estiveram ao seu lado.
“Acho que falta falar e explicar que a vida de quem tem HIV não é muito diferente de quem não tem. Isso é muito importante, pois pode fazer diminuir bastante o preconceito e discriminação. Como consequência, fazer o teste de HIV deixa de ser um tabu, que cria tanto medo na cabeça das pessoas”
Felipe concorda, em parte, com a ideia de que as pessoas “perderam o medo do HIV”. “Meter medo não funciona mais. Não estamos mais na época de apontar culpados, mas de resolver as coisas e mostrar soluções. O ser humano falha, erra. No sexo, isso inclui deixar de usar a camisinha. Não é o ideal deixar de usá-la, mas é importante explicar que existem alternativas que podem resolver esses acidentes”, diz. Ele se refere à profilaxia pós-exposição (quando a pessoa recebe antirretrovirais logo após uma relação sexual desprotegida em que há risco de infecção por HIV.
Ele conta que o fato de ter HIV torna os relacionamentos um pouco diferentes: “De todas as mulheres com quem saí desde o diagnóstico, apenas uma optou por não prosseguir com o relacionamento por causa do HIV. Então, o que muda é encontrar o momento certo para contar que tenho HIV. Depois que eu dou a notícia, todas me pediram um tempo para pensar. A duração desse tempo é que varia. É o tempo necessário para fazer suas pesquisas, visitar meu médico infectologista, aprender sobre HIV, e perceber que não é preciso temer quem vive com HIV e se cuida.”
O namorado de Paulo morreu em 1984 de HIV, mas ele só teve acesso ao teste em 1989, quando o diagnóstico positivo foi comprovado. Começou o tratamento com antirretrovirais em 1992. “Eu tinha 22 anos e vivia muito na noite gay. Quando a Aids chegou mesmo, as pessoas sumiram da noite. Eu mesmo já fui tido como morto várias vezes”, conta.
O preconceito, para ele, é muito presente na vida dos soropositivos: “Muita gente sofreu e continua sofrendo com o estigma, o preconceito, a discriminação. Tem gente que carrega os frascos de medicamento na mochila para os pais não descobrirem porque não sabem qual vai ser a reação da família.”
Paulo, que é jornalista e vive em São Paulo, considera a homofobia como uma das portas de entrada para o HIV. “O jovem gay de 20 anos sabe que tem que usar camisinha, conhece as questões da Aids. Mas está tão vulnerabilizado neste momento, em que foi discriminado pela família, pela escola, que quando encontra uma pessoa, acha que vai ser protegido e esquece que amor não protege ninguém do HIV”.
Celso tinha 48 anos quando começou a sentir uma dor no peito, diagnosticada como pneumonia. Quando contou ao médico seu histórico de usuário de drogas, ele perguntou se ele não queria fazer um teste de HIV. O resultado veio positivo. A transmissão, segundo ele, ocorreu pelo compartilhamento de canudo para uso de droga pelo nariz.
Hoje aposentado, Celso conta que chegou a pesar 32 quilos e ficar 35 dias na UTI. Com o tratamento em dia, hoje ele voltou ao seu peso normal. “Me preocupo comigo, tenho que me respeitar porque é uma doença oportunista, posso morrer de resfriado ou gripe forte. Não bebo, não fumo e não uso nenhum tipo de droga, parei com tudo.”
Celso tem esperança de que descubram uma cura definitiva para a doença. “A minha expectativa é que um dia tenha um remédio para fazer a cura e vou ficar muito feliz com isso. A bateria de medicamentos não é fácil. Se fosse uma pílula só, mas são várias… O que eu acho é que tinha que ter mais divulgação sobre prevenção, pessoas trabalhando na noitada, nas boates, nos colégios.”
Do G1