Sexualidade além das quatro paredes
Gésner Braga*
Primeiramente, esclareço que este é um texto muito elementar e bem didático sobre sexualidade, um abecedário na forma de um certo desabafo, uma tentativa de elucidação de questões óbvias para mim e meus pares, mas aparentemente nebulosas ou desconhecidas para a imensa maioria das pessoas.
Algum tempo atrás, eu li o artigo “Um mês sem armário”, publicado no site Os Entendidos, no qual Henrique de Goes relata sua experiência ao longo de um mês após ter tornado pública sua orientação sexual, por meio de uma postagem aberta em seu perfil no Facebook.
Dentre algumas reações adversas, tal qual um remédio forte demais para quem o ingere, uma passagem em particular me chamou a atenção: o autor afirmou ter tomado conhecimento de que pessoas comentaram, à boca pequena, que ninguém precisa saber da “intimidade” dele, pois o que ele faz “entre quatro paredes” não interessa a ninguém.
Recomendei-lhe que, quando alguém demonstrasse esse grau de insipiência, seria de bom tom informar que orientação sexual não se refere única e exclusivamente à nossa intimidade. Antes disso, é expressão! Expressão da sexualidade que se revela em gestos simples, corriqueiros mesmo, e não apenas naquilo que fazemos ou deixamos de fazer na cama. Isso vale para todos, não só para gays.
Sim, sexualidade é um conceito por demais extenso, do qual o ato sexual é apenas um entre muitos elementos. O seu alcance é tão amplo que atinge o indivíduo antes mesmo que ele nasça e, portanto, muito antes que ele comece a pensar em sexo. Enfim, tudo que se refere a questões de gênero insere-se no conceito de sexualidade, e os exemplos são os mais banais.
Sabendo disso, partirei agora para situações concretas, próprias do universo heterossexual. Talvez assim eu possa despertar no público ao qual destino este texto a empatia necessária para uma maior fluidez de entendimento. E vou começar exatamente ilustrando como a sexualidade pode nos atingir antes que venhamos ao mundo. Quando uma mulher grávida faz ultrassonografia para descobrir se a criança é menino ou menina, está lançada a discussão sobre sexo, gênero e, por conseguinte, sobre sexualidade. Se essa informação servirá para definir a cor do enxoval para o chá de bebê, a discussão se amplifica muita além de quatro paredes.
Prosseguirei com outros exemplos de questões da sexualidade – especialmente da heterossexualidade – postas de forma por demais escancarada. Se um rapaz comenta com amigos que uma garota é atraente e isso revela seu interesse por ela, isso é expressão da sexualidade. Se uma mulher e um homem enviam centenas de convites para o casamento deles, isso é expressão da sexualidade. Se uma pessoa heterossexual publica em uma rede social que está num relacionamento sério, isso é expressão da sexualidade.
Nos casos citados, temos o sexo biológico do bebê, a heteronormatização nas cores do enxoval (onde azul é para meninos e rosa é para meninas) e sobretudo a orientação heterossexual do casal, do rapaz entre amigos e da publicação na rede social. Todos esses exemplos são corriqueiros, estão abarcados pelo conceito de sexualidade, são revelações de orientação heterossexual e nenhum deles está entre quatro paredes. Ao contrário, podem estar expressos para mundo e tornados públicos com um enorme orgulho de autoafirmação.
Então por que não deve ser dado o mesmo direito de livre expressão da sexualidade e da orientação sexual a homossexuais? Por que devemos guardar essas questões em segredo? A resposta é simples, mas indigesta: por puro preconceito de uma sociedade machista e homofóbica, onde germinam valores que não têm a igualdade como fundamento.
Porém, alguém pode alegar que um gay tem o direito de viver livremente de acordo com sua orientação sexual, mas não precisa declará-la numa espécie de ato solene, como fez Henrique, do mesmo modo que não se vê ninguém dizendo “eu sou heterossexual e quero que todos saibam disso”. Ok, eu concordaria com este raciocínio se vivêssemos em um mundo ideal. Mas, infelizmente, o contexto é bem outro como explicarei a seguir.
Todos nós vivemos imersos em uma cultura heteronormativa, e o já citado chá de bebê é um bom exemplo de como tais normas operam em nossas vidas de forma precoce. Crescemos sob o signo dominante da heterossexualidade e sendo por ele sufocados. Alguns sucumbem à pressão. Outros porém se rebelam e rompem os padrões impostos.
É justamente a imposição generalizada, opressora e alienante de um padrão heterossexual que nos leva a transgredir as convenções estúpidas e a afirmar a plenos pulmões: “sou gay”, “sou lésbica”, “sou bi”, “sou trans” ou até mesmo “não quero rótulos”. Declarar o que somos de forma enfática é, muitas vezes, a única maneira que temos de dizer que não nos enquadramos neste modelo de sexualidade que o senso comum e superficial julga universal.
Portanto, quando somos compelidos a anunciar nossa orientação sexual, não o fazemos para agredir, constranger ou, como se diz hoje em dia, para causar. Agimos orientados tão somente pela necessária e libertadora ruptura de uma cultura heteronormativa que insiste em tentar nos anular. E isso não pode ser um segredo.
* Gésner Braga é jornalista, ativista LGBT e mantem o site Clipping LGBT.