Reparar para amenizar a dor
Por Dra. Bethânia Ferreira
A população LGBTT já vivenciou um ou outro caso de olhar torto, debochado ou, ainda, de surpresa quando um gay, lésbica, travesti ou transexual está dentro de uma loja, andando na rua, ou na plateia de um teatro ou cinema. A frequência da discriminação, seja no olhar e nos gestos, seja por atos ou palavras, é tão intensa que a pergunta deveria ser: quem nunca passou por isso?
Recentemente, todos nós acompanhamos a decisão da Comissão Estadual de Direitos Civis do Estado do Colorado, Estados Unidos, a qual que reprovou a conduta do confeiteiro Jack Phillips, por este ter se negado a fazer bolo para o casamento de um casal gay, segundo ele, em virtude de questões religiosas. De forma sábia, a Comissão decidiu: ou Jack faz para todo mundo ou não faz para ninguém.
Duas questões devem ser tratadas nesse caso: a óbvia discriminação e a dualidade de nosso papel na sociedade, ou seja, a vida pessoal versus a conduta pública. O confeiteiro pode ter convicções filosóficas e credo religioso – ninguém está dizendo que não lhe é permitido –, mas no meu convívio social ou na minha empresa eu não posso discriminar as pessoas em razão de tais ideologias. Em suma, as nossas convicções religiosas devem habitar o campo de nossa vida pessoal e não contaminar nossa vida pública.
Existem muitos Jacks por aí. Não é incomum presenciarmos episódios envolvendo casais de gays ou de lésbicas os quais foram destratados, sofreram discriminação e até mesmo foram alvo da violência física em bares ou restaurantes. E também não são raros os casos em que eles foram convidados a se retirar do ambiente. Tais comportamentos revelam, de forma clarividente, condutas de discriminação, logo, devem ser coibidas e reparadas pelo Poder Judiciário e pelas autoridades administrativas com atribuição para tanto.
Condutas discriminatórias e homofóbicas configuram ofensa à dignidade e à honra de um indivíduo ou de determinado grupo, cuja ofensa ou dano pode ser qualificado como dano moral, portanto passível de indenização. A Constituição Federal qualificou como dano moral aquela ofensa à honra, à imagem e à dignidade que se pode depois minorar ou equalizar com uma indenização no campo civil, em forma de reparação monetária.
Inúmeras têm sido as situações nas quais os Tribunais vêm concedendo indenização por danos morais nos casos de homofobia e discriminação em razão da orientação sexual ou identidade de gênero. A Torcida Organizada Camisa 12 do Corinthians foi condenada a pagar uma indenização de R$ 20 mil ao jogador Emerson Sheik, por ter estendido faixas e protestado no centro de treinamento do time contra o atleta, com frases como “viado não aceitamos”. Na época do protesto, o jogador tinha postado nas redes sociais a foto de um “selinho” que havia trocado com um amigo.
O Tribunal de Justiça de São Paulo condenou também a dona de um restaurante da Baixada Santista, por esta ter repreendido um casal gay. Os namorados estavam se beijando quando foram abordados, de forma ofensiva, pela proprietária do restaurante, diante de outros clientes.
Outro fato que originou indenização por discriminação foi o de um aluno da Universidade Federal do Maranhão o qual praticou atos de homofobia contra um professor – inclusive nas redes sociais –, questionando sua formação acadêmica e capacidade de ministrar aulas, em virtude de sua orientação sexual.
A Justiça do Rio de Janeiro, em 1º grau, condenou o Deputado Jair Bolsonaro pela prática de ato de discriminação em 2011, quando disse o parlamentar, em um programa de televisão – entre outras falas de cunho homofóbico – que não corria o risco de ter um filho gay porque seus filhos tiveram boa educação.
Na Justiça do Trabalho, a indenização por danos morais pelo cometimento de atos de discriminação e homofobia por parte dos patrões contra funcionários tem se tornado comum, quando ocorrem atos condenáveis.
O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, no julgamento do Recurso Ordinário 00010612020135020078 A28 decidiu da seguinte forma: “(…) Para efeito de cumprimento das cláusulas do contrato de trabalho é absolutamente irrelevante a orientação sexual adotada pelo empregado, vez que se trata de questão estritamente relacionada à sua intimidade. In casu, restou provada a insólita conduta patronal, com a prática reiterada de ofensas de cunho homofóbico por parte de superior hierárquico, que atingiram o patrimônio moral da obreira, resultando a obrigação legal de reparar. O epíteto de “sapatona”, utilizado amiúde por preposta da demandada, é expressão chula de cunho moral e depreciativo que, nas circunstâncias, constitui grave atentado à dignidade da trabalhadora, pelo alto grau de ofensividade e execração moral, agravada por ser proferida diante do corpo funcional. Independentemente da opção sexual da autora, que só a ela diz respeito, posto que adstrita à esfera da sua liberdade, privacidade ou intimidade, a prática revela retrógrada e repugnante forma de discriminação, qual seja, o preconceito quanto à orientação sexual do ser humano. (…)”
Como podemos ver, o Poder Judiciário vem se manifestando de forma mais contundente contra a homofobia, transfobia e discriminação. Quanto ao Poder Legislativo, esta esfera deixa de cumprir sua função de avançar no tema. Enquanto não progredimos com a lei, vamos lutando com as armas que temos.
Por Dra. Bethânia Ferreira, Defensora Pública.