Prateleira de gente por João Barreto
Há cerca de cinquenta anos, a escritora inglesa Virginia Woolf publicou, em Orlando, uma tese interessante entremeada em ficção. Veja abaixo:
“Orlando transformara-se em mulher – não há que negar. Mas, em tudo o mais, continuava precisamente o que tinha sido. A mudança de sexo, embora alterando o seu futuro, nada alterava a sua identidade. Seu rosto permanecia, como o provam os retratos, praticamente o mesmo. Sua memória podia remontar através de todos os acontecimentos da vida passada, sem encontrar nenhum obstáculo. Alguma nebulosidade pode ter havido, como se uma poucas gotas de sombra tivessem caído no claro poço da memória; algumas coisas tinham ficado um pouco apagadas: e era tudo. A mudança parecia ter-se produzido sem sofrimento, e completa, e de tal modo que o próprio Orlando parecia não a estranhar. Muita gente, à vista disso, e sustentando que a mudança de sexo é contra a natureza, esforçou-se em provar, primeiro: que Orlando sempre tinha sido mulher; segundo: que Orlando é, neste momento, homem. Decidam-no biólogos e psicólogos. A nós, basta-nos expor o simples fato; Orlando foi homem até os trinta anos; nessa ocasião, tornou-se mulher, e assim ficou daí por diante.”
Pobre Orlando, não lhe bastava ser único, especial, e intelectual e psicologicamente extraordinário, tinha que ser enquadrado pela sociedade, pelo seu biógrafo ficcional, pelos seus leitores para ser enquadrado culturalmente. Nós, os leitores, fazemos isso com gente o tempo todo, por que não faríamos então com uma criatura que só existe nas páginas de um livro? Nós ficamos o tempo todo tentando colocar as pessoas em caixas, em prateleiras, em gavetas. Para podermos conhecê-las e entendê-las precisamos restringir toda a sua complexidade a siglas: LGBT…, HSH etc.
É necessário conhecer, categorizar – esforço científico, lalala -, o que não se pode é restringir uma pessoa a um predicado apenas, a um aspecto apenas, porque pessoas são conjuntos de miríades de predicados e de aspectos.
Fazer isto com crianças é brutal.
Lembro que quando eu era criança, em determinado momento, um membro da minha família insinuou que eu não teria filhos e que minha mãe, portanto, não veria cor de netos. Naquela época, ser pederasta equivalia a não render prole, pra usar o jargão rodriguiano (rs). Já que estamos literários hoje, naquela ocasião, me senti em Dom Casmurro, no capítulo A Denúncia, porque soube então que era gay antes mesmo de sentir desejo por quem quer que fosse. Fui um Bentinho sem Bentinho.
Um dia terei filhos, provavelmente (garantidas as condições socioeconômicas para isto), e espero seguir o exemplo contrário e não lhe impor nada que ele não queira, não entenda ou que não esteja preparado para administrar em sua pouca experiência. Não quero com isso dizer que Post Hoc, Ergo Propter Hoc: eu não sou gay porque me disseram gay. Uma coisa veio depois da outra mas não devemos dizer aos nossos filhos o que devem ou não devem ser (a exceção de casos patológicos, é claro, a ser encaminhados para profissionais qualificados).
A infância é uma época de testes, de aprendizado de experiências humanas, não se pode ou deve expor crianças a um discurso sexual muito precocemente: vesti-las como miniadultos ou discutir com quem vão namorar ou deixar de namorar foge à pauta da infância. A menos, obviamente, que ela queira conversar/perguntar sobre o assunto. Colocar pessoas em prateleiras pode ser muito danoso. Colocar crianças em prateleiras pode ser pior ainda: será ele gay? Será ele hetero? Bi? Trans? Etc? Que será, será, whatever will be, will be. O futuro não nos cabe decidir, meramente trabalhar duro para fazê-lo melhor do que o nosso presente.
João Barreto – Jornalista
Jornalista e mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. É analista de comunicação e cultura, especialmente de poéticas audiovisuais. Também tem interesse em desenvolvimento sustentável.
twitter: @jaobarreto / Blog – http://jaobarreto.wordpress.com/