A última atualização da rede de organizações internacionais Transgender Europe informou, no fim de 2023, que 321 pessoas trans e de gênero diverso – que não se identificam com o gênero biológico – foram assassinadas entre 1º de outubro de 2022 e 30 de setembro de 2023. A rede realiza o monitoramento global por meio do projeto Trans Murder Monitoring. De acordo com o levantamento, 94% das vítimas mortas eram mulheres trans ou transfemininas – pessoas que se identificam com traços de feminilidade. Com 235 casos, a América Latina e o Caribe registram novamente o maior número de assassinatos entre todas as regiões. Quase um terço do total (31%) ocorreu no Brasil.
No Dia Nacional da Visibilidade Trans, comemorado há vinte anos em 29 de janeiro, pesquisadores e intelectuais lembram de outro tipo de destruição em curso: o epistemicídio trans. Uma forma de apagamento intencional de conhecimentos que pessoas trans e travestis vivenciam e produzem, mas que só eram reportados por cientistas cisgênero (termo usado para definir pessoas que se identificam com o gênero que é designado quando nasceram, o qual é associado socialmente ao sexo biológico).
“Estamos em um momento de embate pelo direito de fazer a nossa ciência. Falar dos estudos trans sob a nossa perspectiva; sob uma epistemologia trans. Nada sobre nós sem nós”, defende Gabrielle Weber, professora da Escola de Engenharia da USP no campus da cidade de Lorena, no interior paulista. Graduada em ciências moleculares e doutora em física, atualmente Gabrielle é uma das coordenadoras do Projeto Corpas Trans, que além de buscar ações de enfrentamento à transfobia, quer levantar e analisar dados científicos a partir da comunidade trans e travesti da USP.
Dedicada à divulgação científica, Gabrielle tem se preocupado em estudar questões relacionadas às ciências sociais para poder aplicar, de fato, a interdisciplinaridade à ciência que produz. Um desafio quase insuperável para alguém das ciências exatas. “Acaba tendo essa visão de que ciências humanas não são ciência de verdade, não trabalha com dados replicáveis. Mas, a gente pode fazer um cutucão muito pesado e pegar bem no cerne da física: e a cosmologia, onde entra nessa brincadeira?”, questiona. “Afinal, só existe um universo, não tem como fazer experimentos com outros universos e replicar de uma maneira fidedigna o método científico”, observa.
Corpo pedagógico
Pesquisadora da Faculdade de Educação da USP, Maria Clara Araújo dos Passos foi indicada ao doutorado direto pela banca de qualificação do mestrado em sociologia da educação, mas desde a graduação ela defende que os corpos trans são pedagógicos. Maria Clara participou da primeira turma que utilizou o nome social no ENEM, em 2014. Em entrevista ao Jornal da USP ela reforça que sua trajetória pessoal é fruto de um período histórico de inserção das demandas da população trans nas políticas educacionais.
Autora do livro Pedagogias das Travestilidades, a pesquisadora vem investigando como o reconhecimento da identidade de gênero autodeterminada de estudantes travestis e transgênero tem contribuído para o acesso e permanência dessas pessoas na educação básica e no ensino superior.
“Nossa ação e reflexão diária vem exigindo que as instituições se movimentem. Inclusive, que também revejam e reformulem as narrativas que historicamente produziram sobre a população de travestis e transexuais. A própria Universidade de São Paulo tem avançado em suas políticas internas, práticas e currículos, ao passo que esses corpos e seus saberes adentram e disputam o espaço acadêmico”, afirma.
Um dos motivos de protesto na última greve de estudantes na Universidade, a reserva de vagas para pessoas trans não é uma realidade na USP. No Brasil, apenas cinco universidades públicas dispõem de cotas trans para graduação: três delas na Bahia, uma no Amapá e uma no ABC Paulista. Na pós-graduação o número varia, já que cada programa de pesquisa pode adotar seus próprios critérios de avaliação e processos de seleção.
Mas a reivindicação, em si, já é um avanço, segundo Maria Clara. “A todo momento, essa agenda está sendo oxigenada. Hoje estamos discutindo políticas afirmativas para pessoas trans. Óbvio que precisamos qualificar um pouco as definições que a gente dá a essas categorias, mas há dez anos estávamos batalhando para as universidades acolherem o nome social”, lembra. “Dar luz a este percurso é um caminho de reconhecimento dessa sagacidade, desse investimento que temos realizado enquanto população, mas também enquanto grupo intelectual que tem disputado espaço acadêmico”, reforça.
“A gente tem visto algumas posições bastante reativas, até reacionárias, diante do avanço de um pensamento transfeminista dentro do campo dos estudos de gênero e da academia brasileira como um todo”, lamenta Alexandre Silva Bortolini, pesquisador cisgênero e um dos 50 pós-docs negros da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP. Presidente da Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura (ABETH), Bortolini acredita que alguns pesquisadores que assumiram o papel de “porta-vozes” da população trans, não conseguem admitir novas formas de trabalho conjunto, que não mais reproduza o formato “pesquisador e objeto”.
Ele explica que a emergência de pesquisadoras e pesquisadores transgênero na academia brasileira ganhou força na última década, trazendo uma produção intelectual sobre si mesmos e sobre o mundo. Para ele, este processo é resultado de uma ampliação do acesso da população aos meios de produção de conhecimento científico. “Para sermos bem explícitos, porque conhecimento essa população sempre produziu”, destaca.
Relatório do Grupo Gay da Bahia informou que, em 2023, a cada 34 horas uma pessoa LGBTQIAP+ foi vítima de morte violenta, resultando em 257 homicídios. Do total de mortes registradas, a maior parte (127) se referia a pessoas travestis e transgêneros. A informação foi divulgada pelo portal de notícias Alma Preta Jornalismo e revela números ligeiramente menores do que em 2022, quando o País registrou 273 mortes. O Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil de 2022 está disponível neste link.
“Apesar de ter um apagão grande de dados sobre a população trans, esses dados estão começando a surgir, mas cabe uma ressalva: a situação real é muito pior. Há, ainda, uma dificuldade de coleta dessas informações, porque em muitos casos não se tem como saber se uma pessoa é trans, se ela é LGBT. Isso envolve fazer uma pesquisa de antecedentes, olhar o background, o que leva muitas pessoas trans que não alteraram seus registros a serem enterradas sem fazer menção à identidade de gênero”, descreve Gabrielle.
“Junta também que muitas vezes quem vai fazer as apurações são instituições tradicionalmente transfóbicas, que vão se recusar a usar nomes sociais e fazer os relatos adequadamente. Há uma subnotificação recorrente e, a meu ver, a melhor forma de melhorar esses dados é diminuir a transfobia”, diz. A docente acredita que somente o respeito às identidades das pessoas pode garantir uma melhora, tanto dos dados quanto da situação de violência.
A consequente transferência das pessoas trans de um ambiente acadêmico saudável para o mercado de trabalho e para o poder público também pode sinalizar um caminho de enfrentamento à violência. “Tudo isso vai contribuindo para a gente poder compreender a partir de um outro lugar, a partir de quem é justamente o sujeito que vive os desafios de ser uma pessoa trans na sociedade brasileira”, diz Bortolini.
Fonte: Jornal da USP