Museu do Recôncavo Wanderley Pinho reabre com novo conceito e proposta de reflexão sobre o passado escravocrata

O Museu do Recôncavo Wanderley Pinho, localizado às margens da Baía de Todos os Santos, na Enseada de Caboto, em Candeias, reabriu ao público nesta segunda (08), após uma ampla requalificação estrutural e museológica. O espaço inaugura um novo conceito, que privilegia narrativas africanas e indígenas e propõe uma reflexão crítica sobre o período colonial e escravocrata no Recôncavo Baiano.
A cerimônia de abertura reuniu autoridades, lideranças comunitárias e grupos culturais, como a Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, de Saubara, lideranças indígenas, e o cantor Lazzo, que fez o show comemorativo. O governador Jerônimo Rodrigues foi recepcionado pelo Samba de Roda Dona Dalva, renomada sambadeira do Recôncavo. Antes da visita guiada ao museu, ele acompanhou um toré realizado por indígenas tupinambás em saudação aos ancestrais e plantou uma muda de ipê amarelo, gesto simbólico de respeito ao território.
Na capela de Nossa Senhora da Conceição da Freguesia, uma parada da comitiva para a bênção da imagem da padroeira pelo padre Juarez Machado. O governador visitou a Sacristia, onde estão imagens sacras dos séculos XVII a XIX, restauradas pela equipe do artista plástico, restaurador e professor José Dirson Argôlo.
“Este museu não é apenas um prédio restaurado. Ele representa nossa luta por reconhecer as histórias que sempre estiveram aqui, mas não eram contadas. Queremos que os estudantes, principalmente, venham, conheçam, debatam e façam sua própria leitura desse passado”, afirmou o governador Jerônimo Rodrigues, destacando o compromisso com a educação e com o fortalecimento da cultura baiana.
Instalado no antigo Engenho Freguesia, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1940, o Museu foi criado no início da década de 1970 e ocupa um conjunto arquitetônico formado por Casa Grande, capela, antiga fábrica, receptivo náutico e edificações de apoio.
O investimento total para requalificação e restauro ultrapassou R$42 milhões, financiados pelo Governo da Bahia, por meio da Secretaria de Turismo (Setur), e Prodetur/BID do Ministério do Turismo. A Secretaria de Cultura do Estado(SecultBA) destinou, via Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC), R$3 milhões para o acabamento das obras e elaboração do novo projeto expográfico. As intervenções incluíram, também, aquisição de equipamentos, adequação de ambientes, instalação de gradil e de um moderno sistema de segurança com 136 câmeras, monitoramento 24h e alarmes em peças , além de sinalização e identidade visual.
A reabertura marca uma nova fase do Museu do Recôncavo, que assume a missão de ser um espaço de diálogo e reflexão. O projeto propõe recontar a história a partir das vozes da comunidade do entorno, antes marginalizadas, transformando o espaço em referência para a compreensão da diversidade e complexidade da sociedade brasileira.
“O que estamos entregando aqui é um espaço vivo, de reflexão, de crítica e de diálogo com as comunidades do entorno. Este museu agora fala a partir do Recôncavo, dos povos da terra, dos povos negros e da força que construiu este país”, destacou o secretário de Cultura, Bruno Monteiro.
Núcleos expositivos
A partir de um amplo trabalho de pesquisa e concepção realizado pelo IPAC, o Museu passa a contar com cinco núcleos expositivos que estruturam a nova narrativa, além da Capela de Nossa Senhora da Conceição da Freguesia, com exposição de arte sacra, e o térreo para exposições temporárias de longa duração.
O Núcleo Histórico apresenta uma linha do tempo que revisita os principais marcos do Engenho Freguesia e a trajetória do próprio Museu. No Núcleo dos Povos Originários, o visitante encontra fotografias, vídeo documentário e uma intervenção artística em grafismo feita pelo artista indígena Thiago Tupinambá.
O Núcleo dos Povos Escravizados reúne manuscritos do poema “Os Escravos”, de Castro Alves, digitalizados do original preservado no Parque Histórico Castro Alves (PHCA), administrado pelo IPAC em Cabaceiras do Paraguaçu. Também há documentos históricos e totens para acesso à plataforma Slave Voyages, um banco de dados gratuito sobre o tráfico transatlântico de escravizados.
O Núcleo Doméstico apresenta mobiliário, retratos, pinturas, desenhos e uma cozinha de época, sem janelas e grandes fornos, retratando o espaço onde as mulheres escravizadas trabalhavam, preparavam a alimentação dos seus senhores e articulavam formas de resistência . Em vez de quartos e salas em estilo colonial, devidamente arrumados, a disposição do mobiliário evidencia a mão de obra de artesãos anônimos.
O Núcleo da Memória reúne objetos de suplício e tortura na Sala do Silêncio, convidando o público à reflexão. “Esta reabertura consolida nossa política de preservação e requalificação dos museus do IPAC, ao mesmo tempo em que nos convida a revisitar o passado e escutar as vozes daqueles que moldaram a história do Recôncavo e da Bahia. Aqui vamos recontar a história a partir dessa perspectiva e já estamos preparando uma série de atividades para ocupação do museu”, destaca Marcelo Lemos, diretor-geral do IPAC.
Contribuição coletiva
O núcleo ainda inclui a mostra colaborativa Fragmentos do Passado, montada com a participação dos atuais trabalhadores do museu, que receberam uma homenagem do governador Jerónimo Rodrigues. A mostra reúne restos de móveis, ferramentas e objetos encontrados durante as obras e expostos de modo que remete a uma sala de ex-votos. “São fragmentos que contam histórias de trabalho, criatividade e resistência. A curadoria parte da ideia de ex-votos, reinterpretada como gesto de memória e reconhecimento”, explica Daniela Steele, artista plástica e coordenadora do projeto expográfico.
No térreo, o Museu abriga a exposição temporária de longa duração “Encruzilhadas”, que reúne obras de arte negra brasileira e africana dos acervos do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) e do Solar Ferrão. São 40 artistas representados, entre eles Mestre Didi, Pierre Verger, Rubem Valentim, Juarez Paraíso, Emanoel Araújo, Bel Borba, Arlete Soares e Alberto Pitta. A mostra inclui, ainda máscaras da Coleção Cláudio Masella, industrial italiano que reuniu peças de 18 etnias de 15 países.

Exposição “Encruzilhadas” no Museu do Recôncavo Wanderley Pinho
Fonte/Crédito
Manu Dias/GOVBA
A escolha da exposição para a reabertura do Museu dialoga com a metáfora da encruzilhada como lugar de movimentos e recomeços, associada a Exu, orixá da comunicação e abertura de novos caminhos.
Acervo e visitação
O acervo original do Museu do Recôncavo conta com 260 peças, entre mobiliário, indumentária, desenhos, pinturas, cerâmicas e fotografias, além de instrumentos de tecnologia rural e industrial e objetos de suplício. Destas, 141 foram restauradas por uma equipe de 15 profissionais coordenada pelo professor Dirson Argolo.Entre elas, 30 imagens sacras.
O Museu oferece visitas guiadas com monitores especializados, audioguia em Libras, banheiros acessíveis e áreas de descanso, além de espaços para residências e ocupações. O percurso, que inclui a Capela de Nossa Senhora da Conceição da Freguesia, tem duração média de duas horas. O equipamento funcionará de quarta a domingo, das 10 às 17h, com acesso gratuito.

Museu do Recôncavo Wanderley Pinho reabre com novo conceito e proposta de reflexão sobre o passado escravocrata
Fonte/Crédito
Caio Diniz
Estão programadas residências e ocupações artísticas e atividades formativas, buscando integrar a comunidade ao cotidiano do espaço. Oito projetos foram selecionados, por meio da PNAB ano 1, entre eles: Ecos do Engenho, que promoverá oficinas abertas de cerâmica inspiradas nas tradições do Recôncavo Baiano e no simbolismo do Marafo de Exu, como metáfora da resistência cultural; e Narrativas da Palavra: Engendrando o Ver, que amplia a participação de pessoas com deficiência no museu, com vídeos com audiodescrição e oficinas de acessibilidade atitudinal e comunicacional.
Histórico
Instalado no Engenho Freguesia, considerado o primeiro engenho do país, o Museu ocupa um espaço do século XVI marcado pela presença indígena e pela história do trabalho escravizado. Em 1877, 121 pessoas escravizadas atuavam no local. Herdeiro do casarão, o historiador José Wanderley Pinho — professor, prefeito de Salvador e deputado federal — propôs uma das primeiras iniciativas de proteção ao patrimônio cultural no Congresso. Embora a proposta tenha sido interrompida pela dissolução do Parlamento em 1930, o texto serviu de base para a futura legislação de proteção ao patrimônio cultural e inspirou a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1937.