Ministério da Justiça quer implementar dados de homotransfobia em boletins de ocorrência
O Ministério da Justiça e Segurança Pública quer um novo protocolo nos registros de ocorrências policiais nas delegacias para que o crime de homotransfobia seja contabilizado oficialmente em todos os estados brasileiros.
O formulário Rogéria (Registro de Ocorrência Geral de Emergência e Risco Iminente à Comunidade LGBTQIA+) foi criado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para ser aplicado nos registros dos processos criminais.
A pasta decidiu firmar um acordo de cooperação técnica para que também seja observado nas delegacias, abrangendo assim a fase pré-processual. A expectativa é que esse acordo seja assinado em agosto, durante a reabertura dos trabalhos do CNJ.
O STF (Supremo Tribunal Federal) enquadrou a homotransfobia na lei do racismo em 2019, com pena de 2 a 5 anos de reclusão. Há, no entanto, estados que ainda não fazem a coleta desses dados.
Atualmente, quando uma pessoa LGBTQIA+ é assassinada devido à sua identidade de gênero ou orientação sexual, o crime é registrado em muitos estados apenas como homicídio, sem que a motivação seja especificada.
O registro do boletim de ocorrência cabe às polícias estaduais, que não são obrigadas a aderir à diretriz da pasta.
Membros do Ministério da Justiça e Segurança Pública dizem acreditar que, se a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) da Segurança Pública for aprovada, o governo federal poderá impor diretrizes básicas, podendo esta ser uma delas.
Caso o texto não seja aprovado, a exigência poderá ser feita como condição para o repasse do Fundo Nacional de Segurança Pública. O ministério já adotou essa estratégia com as câmeras corporais.
De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 214 pessoas homossexuais ou transexuais foram assassinadas no Brasil em 2023. O número é 42% maior em comparação a 2022, quando houve 151 mortes.
Juliana Brandão, pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que os dados sobre crimes de homotransfobia são subnotificados no país. Isso significa que muitos estados não compartilham informações sobre o tema ou alegam não possuir esses dados.
Ela avalia que a aplicação de um protocolo traria padronização e visibilidade a esse tipo de crime. No entanto, Juliana ressalta que o país, além de focar na resposta repressiva à homotransfobia, deve trabalhar no combate às violações, em uma vertente promocional de direitos.
“Não basta criminalizar. É necessário ampliar o olhar para mudar o estado de coisas que vulnerabiliza pelo não acesso a direitos. Se essa pessoa estiver amparada, com acesso a uma educação de qualidade, moradia digna e condições de trabalho com remuneração justa, ela estará em um patamar de cidadania que impactará na proteção e a tornará menos sujeita a ser vítima de homotransfobia”, afirmou.
Apesar de não ser uma realidade em todo o país, algumas unidades da federação já conseguem realizar a coleta de dados.
Cyntia Carvalho e Silva, delegada-chefe adjunta da Decrin (Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual), disse que, no Distrito Federal, o protocolo foi criado em 2019, um mês após a decisão do STF.
Ela destacou que, além de existir uma opção no sistema que permite a classificação do crime como homotransfobia, o protocolo criado no DF auxilia policiais a lidarem com o público, incluindo o respeito ao nome social de pessoas transexuais.
“Mudamos todos os sistemas para inserir a homotransfobia nos boletins de ocorrência. A partir do momento que conseguimos colher dados sobre esse tipo de crime, conseguimos designar mais pessoas para trabalhar com o tema, oferecer qualificação para os policiais e pensar de forma mais precisa nas políticas públicas a serem desenvolvidas”, afirmou.
Além da contagem feita por alguns estados, associações ajudam a mapear casos no Brasil. A Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) divulga anualmente um dossiê sobre assassinatos de pessoas transexuais no país.
O Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2023 revela que, entre 2017 e 2023, foram registrados 1.057 homicídios de pessoas trans, travestis e não binárias no Brasil. No comparativo entre 2022 e 2023, observou-se um aumento de 10,7% no número de assassinatos de pessoas trans, passando de 131 em 2022 para 145 em 2023.
“Implementar e padronizar os boletins de ocorrência é fundamental. Hoje, as políticas públicas são construídas com base em dados estimados. Quando tivermos esses dados oficializados, as políticas serão mais direcionadas e eficazes. Vamos direcionar as ações para reparar e erradicar esse mal na sociedade”, afirma Keila Simpson, diretora da Antra.
Fonte: Folha de S. Paulo