*Mayra Cardozo
Recentemente, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a Lei Maria da Penha é aplicável a mulheres transgêneros. A decisão foi concedida por unanimidade, favorável a um recurso apresentado em favor de uma mulher transgênero que alega ter sido agredida pelo pai.
O Ministério Público Federal defendeu o direito da mulher transexual às medidas protetivas com base na lei Maria da Penha, independentemente de ter sido submetida a cirurgia de transgenitalização.
Essa decisão do STJ foi importante não só para a questão da luta das mulheres trans, mas também para que o Brasil se alinhe com os paradigmas internacionais dos Direitos Humanos.
Em 2021, a corte interamericana, no caso Vicky Hernández vs. Honduras, já tinha se posicionado no sentido de se aplicar os normativos internacionais de proteção à mulher às mulheres trans. Entretanto, até hoje não tínhamos um posicionamento interno do STJ sobre isso.
Além de representar uma vitória na luta dos direitos humanos, esse posicionamento representou um alinhamento do Brasil em relação às diretrizes jurisprudenciais internacionais com sistema regional de proteção dos direitos humanos.
A importância dos direitos às pessoas transexuais
Esse caso foi muito importante em termos do judiciário. Na realidade, quando já havia possibilidade de alteração do nome no registro civil e já se reconhecia a ideia de autodeterminação, já poderia ser considerado que a Lei Maria da Penha iria se aplicar a mulheres trans.
Se você concede o direito de uma pessoa de se autodeterminar como ela quiser, automaticamente essa autodeterminação vincularia direitos à essa determinação. Então deveria ter sido algo automático, mas infelizmente o Brasil é um dos países que mais mata pessoas trans e que mais consome a prostituição e a pornografia transexual – o que acaba mostrando o quanto os corpos de pessoas transexuais são objetificados.
Para se ter ideia, de acordo com o Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2021, um estudo realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), foram registrados 140 assassinatos de pessoas trans no Brasil somente no ano passado. Dessa forma, o Brasil se tornou, pelo 13º ano consecutivo, o país em que mais pessoas trans foram assassinadas.
A demora no reconhecimento dos direitos
A demora no reconhecimento dos direitos transexuais está vinculado a um sentimento social de transfobia, de não reconhecer as mulheres transexuais tanto quanto mulheres como mulheres cis. Na realidade, devemos entender que a mulher trans deve ser submetida a mais proteção, já que ela possui mais interseccionalidades de personalidades oprimidas.
Ou seja, ela é oprimida pelo fato de ser uma pessoa transexual, que já gera um preconceito, opressão e violência de gênero, e também é oprimida pelo fato de ser mulher – o que demandaria ainda mais proteção e não menos. Então, a decisão tomada pelo STJ foi muito importante e simbólico no sentido do judiciário reconhecer que tanto o sexo quanto o gênero são questões socialmente construídas.
É importante reforçarmos a importância da ideia constitucional das pessoas se auto determinarem. Precisamos também entender o que vai mudar, na prática, com essa decisão?
Ela vai mandar que mulheres transexuais, vítimas de violência doméstica, possam usufruir das proteções fornecidas pela Lei Maria da Penha. Então, poderá utilizar das proteções das medidas acauteladoras que estão disponibilizadas, dos tratamentos para a vítima, e todo um procedimento acautelador e um procedimento de combate contra a violência de gênero. Por exemplo, mudanças protetivas contra agressores e etc.
Lembrando que a Lei Maria da Penha está vinculada apenas para relações domésticas. O que pode causar efeito nessa decisão são outros entendimentos no sentido de que, os crimes que são relacionados e tipificados no código penal contra as mulheres, sejam aplicados para as mulheres trans – o que já vem acontecido, mas talvez se solidifique ainda mais com a decisão tomada pelo STJ.
O que precisamos entender é que o gênero é uma construção social sobre a ideia do sexo, e que o sexo também é uma construção social, logo o ser mulher é algo socialmente construído e não determinado pela biologia.
Essa decisão não foi um ativismo judicial, mas sim uma interpretação correta dos conceitos. E, principalmente, uma derivação constitucional do próprio direito de se autodeterminar.
*Mayra Cardozo, advogada especialista em Direitos Humanos e Penal, também é mentora de Feminismo e Inclusão e líder de empoderamento.