O primeiro ano de mandato de um congressista em Brasília costuma ser um choque de realidade. Em poucos meses, cai a ficha de que os projetos prometidos aos eleitores estão em conflitos com tantas outras propostas e exigirão muito suor e habilidade para andarem. Esse é o quadro geral para quem chega para disputar poder entre 513 deputados e 81 senadores. Agora, se o novato em questão for uma travesti, o ambiente passa de desafiador a hostil e violento.
“[Na eleição de 2022], fizeram um site especificamente sobre mim dizendo formas como eu iriam me matar. Colocaram fotos da minha filha, que tinha quatro anos de idade, descrevendo como iriam estuprá-la na minha frente. Ameaças todas públicas. Tive que andar com carro blindado, andar e votar com o colete à prova de bala”, relembrou a deputada Duda Salabert (PDT-MG).
Assim como Erika Hilton (Psol-SP), Duda é uma das duas travestis que ocupa uma cadeira na Câmara dos Deputados e figura na lista das 100 lideranças futuras da revista americana Time. E como milhares de travestis, convive diariamente com ameaças de morte e violência dentro e fora do seu ambiente de trabalho.
Em entrevista ao Terra dada na noite do dia 21 de maio, a deputada e professora de literatura contou dos desafios adicionais a um mandato federal que vão passam por corrigir o pronome de tratamento de deputad“o” para deputad“a”, conviver com transfobia e ameaças de morte e a dificuldade de ser ouvida sobre pautas para além da comunidade LGBT, em projetos estruturantes de políticas econômicas, educação e meio ambiente.
Realidade violenta
“Minha filha para ir ao balé, na padaria, tinha que andar com quatro, cinco policiais armados. Para ir à escola, tinha que ficar um carro de polícia em frente. É um processo de violência que é feito para desestimular nossa participação na política institucional”, contextualizou Duda.
Pergunto como a filha dela reage a essa rotina – muito diferente da que filhos de outros parlamentares têm.
“Não, ela não sabe disso. Ela tem cinco anos. Nós nunca falamos isso para ela. Falamos que a gente participa da Patrulha Canina”, disse citando o programa de TV infantil.
“A família me apoia, mas envolve a saúde mental da minha companheira. O preço que ela paga por estar comigo é muito alto”, prosseguiu mantendo um tom calmo na fala, contrastante com a postura combativa.
“É vergonhoso morar num país em que 90% das travestis e transsexuais se encontra na prostituição e não há nenhuma política pública de empregabilidade para essa comunidade. O Congresso nunca se debruçou sobre essa vergonha pelo fato de que a nossa identidade em nossas lutas são historicamente usadas como trampolim político para setores da ultra direita é conquistar mais voto”, considerou ela.
Questionei por que os colegas parlamentares dela não se chocam com esse cenário?
“Há que se pensar o processo histórico brasileiro. A cidadania sempre foi construída a conta gotas no Brasil. Por exemplo, a escravidão. Já se sabia no Brasil que era um crime do ponto de vista moral, ético e religioso, que a escravidão era uma vergonha internacional. As elites já sabiam isso no Brasil”, analisou.
E prosseguiu: “mesmo tomando conhecimento, o processo de abolição da escravatura se deu a conta gotas. Então teve a lei Eusébio de Queiroz, Lei dos Sexagenários dentre outras, em que o estado reconhecia que a escravidão era algo ruim. Por que não se teve a abolição da escravatura logo no começo?”.
Transfobia e cidadania
O paralelo entre a luta por direitos trans e questões sobre racismo e escravidão foi utilizado algumas vezes pela parlamentar durante a entrevista para exemplificar como a construção de cidadania se desdobra num lento processo histórico.
Na atual conjuntura, a percepção dela é de que a composição das duas Casas leva os defensores dos direitos LGBTQIA + a gastarem mais energia para evitar retrocessos do que avançar na pauta.
“Não faço tantos enfrentamentos como deveria fazer porque eu sei que alguns que eu fizer, o preço que eu vou sofrer de violência política e a minha família também é muito grande. A gente coloca na balança qual briga podemos entrar”, considerou.
Ela citou como exemplo um requerimento que seria votado naqueles dias de maio na Comissão de Educação para discutir questões LGBT em uma audiência pública, mas foi rejeitado antes mesmo de ser votado.
“O movimento [LGBT] quer que a gente lute [pelo requerimento] e é legítimo. Aí eu penso, estou lutando por coisas muito maiores. Se eu entrar nessa luta para aprovar um requerimento que será aprovado em outras comissões que temos maioria. É melhor do ponto de vista estratégico. Do que encampar uma luta por um requerimento de audiência pública e o preço que vou pagar é e-mails de ameaça de morte, vão chegar na minha família, o celular da minha companheira”, contou.
Uma situação diferente, exemplificou, é sobre o projeto que vai contra o direito casamento de pessoas do mesmo sexo. “Essa briga a gente vai entrar. Mas precisamos colocar na balança. Não dá para entrar em todas, porque o preço é sempre muito grande”.
Citando os obstáculos e casos de transfobia, a deputada relembrou o episódio em que o atual presidente da Comissão de Educação, o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), foi à tribuna do plenário usando peruca.
“As pessoas não compreendem o que é transfobia. Falta um letramento. E é uma luta de séculos. Para discutir o que é transfobia, vai demorar muito tempo”, disse.
E seguiu: “Tenho certeza que a sociedade veria como algo muito sério se um parlamentar se pintasse de preto e imitasse um macaco de forma nojenta no plenário. Por que há um mínimo de compreensão sobre o que é racismo, mas não há sobre o que é transfobia”, ressaltando que ambos crimes são inafiançáveis.
Diante deste cenário, Duda defende o enfrentamento político para alterar a estrutura econômica do país.
“Nós vivemos num modelo econômico neoliberal e os governos têm tentado resolver a crise do neoliberalismo com mais liberalismo. Isso escancara as desigualdades. O sistema capitalista no Brasil sempre se valeu das diferenças para explorar mais, então negros e negras, mulheres, LGBT e indígenas acabam tendo uma exploração maior”, afirmou.
A deputada pondera que quando tentam discutir uma pauta específica para a comunidade LGBT, a sociedade pode reclamar dizendo que o posto de saúde do bairro, o desemprego ou pessoas em situação de rua são mais urgentes. Ela equipara as mazelas, “temos que entender que esses problemas andam juntos”. A fala vem embasada da experiência que teve antes de assumir a cadeira de deputada federal, em trabalhos vluntários e ações educacionais com travestis em Belo Horizonte.
“Se a gente pensar em um outro modelo econômico, que de fato promova cidadania no Brasil, fortaleça os direitos humanos, a questão LGBT virá a reboque. Não adianta nós lutarmos pelo Direito LGBT sem pensar numa mudança do modelo econômico”.
Acordão da impunidade e consciência
Durante a entrevista, ela relatou que não só as travestis que estão nas ruas são ignoradas pela Justiça, como quem transita e trabalha no Congresso.
“A violência que a gente recebe acaba sendo utilizada como moeda de troca para salvar outro parlamentar que fez outra violência. É o famoso toma lá dá cá. A gente não vai punir esse deputado pela transfobia que ele fez, em contrapartida a gente pede que determinados partidos não punam tal deputado que agiu de forma machista com a outra”, disse.
Duda relembra uma luta comum de várias travestis, o “trinômio: nome, banheiro e identidade” – questões exploradas e atacadas por grupos conservadores e radicais. “O mínimo para reconhecer nossos corpos ainda não foi conquistado”, refletiu.
O processo de violência que a deputada falou logo no início da entrevista foi abordado diretamente ou indiretamente em praticamente todos os assuntos. Ela elencou várias barreiras que são estabelecidas a partir desses comportamentos excludentes e os prejuízos que trazem para segurança e condições de disputa política das travestis. Um outro ponto para o qual ela chamou atenção foi sobre a cobertura fraca e limitada da imprensa.
“A minha principal pauta é educação e o meio ambiente. Eu sou uma travesti, a questão LGBT, tá no meu corpo e por senti-la, discuto do ponto de vista Legislativo. Mas ninguém me chama para discutir essas pautas, é só a questão LGBT. É um problema estrutural no Brasil”.
Ela falou também da dificuldade de tirar o rótulo que tentam impor a ela sobre um mandato identitário, que só atua em causas segmentadas.
“Foi aprovada a reforma tributária, não vai chamar Duda Salabert para discutir a reforma tributária. Vai nos chamar para discutir a pauta LGBT. Há um desmonte da política ambiental no Brasil, não vou ser chamada pelos portais para discutir a crise climática”, reclamou.
Ela citou como exemplo o projeto de sua autoria aprovado sobre distribuição de água potável a escolas.
“Foi aprovado por unanimidade. Nenhum jornalista me chama sobre a potabilidade da água nas escolas. Mas não passo uma semana sem receber dez convites de jornais para discutir a pauta LGBT”, reclamou.
Eleita com 208 mil votos, a deputada foi a terceira mais votada no estado, atrás de Nikolas Ferreira, com 1,4 milhão de votos, e André Janones (Avante-MG), com 238 mil. A base de Duda passa para além de grupos LGBT, como ela faz questão de reforçar dizendo que até pessoas à direita votaram nela.
“Toda eleição é um processo muito doloroso. Estou em segundo lugar nas pesquisas para prefeitura de Belo Horizonte, eu ainda me questiono se vou disputar. Tenho chance de ganhar a prefeitura de uma capital, mas quando eu penso na violência que eu vou passar, penso se vale a pena”, refletiu.
Mantendo o mesmo tom professoral e calmo que usa para falar tanto das violências que sofre quanto das críticas políticas que faz, disse que vê na educação o potencial de mudança mais profunda no país.
“Não há outra forma de transformar que não seja pela educação. Temos uma lei que criminaliza o racismo e eu pergunto, quantas pessoas foram presas por racismo? Mais importante do que criminalizar, é construir consciências anti-raciscta, anti-lgbtfóbicas e anti-machistas. Mas no Brasil a educação nunca foi levada a sério”, afirmou.
Fonte: Terra