GT Memória e Verdade LGBTQIA+ ouve relatos de vítimas de violações do ES e MS
os 61 anos, Edna Mara Ferreira carrega no corpo as cicatrizes de uma vida marcada pela violência e o preconceito. As marcas são fruto das agressões feitas com fogo e facão cometidas pelo pai, ainda na infância, na comunidade quilombola São Mateus, interior do Espírito Santo. O motivo: ser gay.
“O meu pai não aceitava de jeito nenhum. Tenho marcas das surras dadas por ele e até pela minha professora da época”, relata. O convívio com os amigos de escola também era restringido. “Eu não podia ir ao banheiro durante as aulas e até a merenda era restrita”, conta. “Só podia merendar no final das aulas ou na volta pra casa”, complementa.
Quando se mudou para Vitória (ES) aos dez anos de idade e antes da transição, ela também conheceu a truculência policial. “Você não precisava de um motivo para ser preso. Eles alegavam que a gente cometia vadiagem”, conta. A chamada contravenção penal punia com até três meses de prisão aquelas pessoas que não possuíam renda para sobreviver ou que sobreviviam por meio de ocupações consideras ilícitas.
Em um dos casos, Edna e um grupo de amigos foram levados em viaturas da polícia para um lixão de São Pedro. No local, foram soltos sob uma rajada de tiros. Para se proteger, eles mergulharam nos aterros. O caso foi denunciado e, posteriormente, e inspirou o documentário “Lugar de Toda Pobreza”, dirigido por Amylton de Almeida.
O relato foi um dos oito depoimentos realizadas durante a audiência pública virtual do GT Memória e Verdade LGBTQIA+ realizado nesta quinta-feira (3) e que reuniu representantes do Espírito Santo e Mato Grosso do Sul.
Estereótipo e preconceito
Randas Freitas, professor de História, apresentou dados sobre a campanha estadual capixaba contra a Aids, em 1987, marcada por estereótipos e preconceito. Sanitaristas responsáveis pela campanha apontaram os homossexuais e as prostitutas como “dignos de pena” por serem suspeitos de disseminar a doença, e que a maneira de evitar a Aids era “evitando a promiscuidade”.
A perseguição chegou a ser comparada, à época, com aquela praticada contra os judeus. “A abordagem da campanha e as falas de autoridades contribuíram para o aumento alarmante do preconceito no Espírito Santo”, afirmou o professor.
A travesti Chica Chiclete perdeu as contas de quantos amigos perdeu para o HIV. No final da década de 1980, as visitas ao quarto andar do Hospital das Clínicas, onde ficavam as alas que tratavam os infectados pelo vírus, se tornaram frequentes. O local ficou conhecido como “corredor da morte”. “Era vergonhoso ter Aids, ainda mais no interior. As casas eram apedrejadas, as pessoas tinham medo”, relata.
“As famílias paravam o carro na frente do hospital, jogavam as pessoas só com os documentos e roupa do corpo e iam embora. Era como se fosse um cachorro abandonado na rua”, lembrou.
De acordo com o professor Randas Freitas, o caso é o testemunho de um período desafiador marcado pela desinformação, pelo medo e pela intensificação do preconceito e da violência contra a população LGBTQIA+ em um momento em que os direitos e a própria existência das pessoas eram ameaçadas. “A memória desses eventos é fundamental para que possamos aprender com o passado e continuar construindo uma sociedade mais justa e inclusiva para todos”, apontou.
Mortes Guarani-Kaiowá
O líder indígena Gualoy Guarani-Kaiowá denunciou os assassinatos de indígenas LGBTQIA+. De acordo com ele, a violência também ocorre por meio de intolerância religiosa, ataques e expulsões de territórios. “As mesmas violações de direitos humanos que os nossos povos indígenas Guarani-Kaiowá estão sofrendo, nós pessoas LGBTQIA+ indígenas Guarani-Kaiowá também somos afetados”, declarou.
As violações contra esse povo se aproximam do genocídio, apontou o professor e pesquisador pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Guilherme Passamani. De acordo com ele, a heterossexualidade normativa é um dos pilares do agronegócio, base da economia do estado.
“A violência acometida à população LGBTQIA+ tem similaridade com a praticada contra as mulheres e, especialmente, com aquela praticada contra a população indígena”, afirmou. “Todas essas populações que estão à margem do estilo de vida do agronegócio e que criam esse imaginário social são violentamente tratadas”, apontou.
As sucessivas mortes de jovens Guarani-Kaiowá em função da disputa por território ou pela identidade e orientação sexual levaram a integrante da Via Campesina, Dê Silva, ao Mato Grosso do Sul em 2022. Segundo ela, os crimes tinham um modus operandi que levavam os investigadores a concluir que as mortes ocorriam por suicídio.
“Só é possível pagar essa dívida histórica demarcando os territórios desse povo”, defendeu. “A nossa luta é que essa terra vermelha do Mato Grosso do Sul não seja mais banhada pelo sangue Guarani-Kaiowá, um povo de tanta luta e resistência”, afirmou.
Audiências Públicas
Esta foi a sexta audiência pública do GT Memória e Verdade realizada no intervalo de pouco mais de um ano. Ao longo de 2024, as vivências e experiências da população LGBTQIA+ foram relatadas ao longo de cinco encontros realizados em Brasília (DF), Belo Horizonte (MG), Florianópolis (SC), Belém (PA) e Fortaleza (CE). As populações das 27 unidades da federação das regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste, Norte foram mobilizadas.
Relatório Final
A próxima etapa do GT Memória e Verdade é a elaboração de um relatório com os padrões de violência realizados contra a população LGBTQIA+ e uma série de recomendações a diferentes instâncias do poder público. A entrega do documento à ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, está prevista para ocorrer até o final de junho.
Consulta pública
Até o dia 21 de abril, movimentos sociais, organizações, coletivos e pessoas físicas podem enviar recomendações por meio de formulário disponibilizado para consulta pública da sociedade civil. Depois de coletadas, as propostas serão analisadas e poderão integrar o relatório final do GT Memória e Verdade LGBTQIA+.
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GT Memória e Verdade
O GT Memória e Verdade LGBTQIA+ foi instituído em dezembro de 2023 com a missão de esclarecer as violações de direitos humanos contra a população LGBTQIA+ ao longo da história brasileira, desde a colonização até os dias atuais. Desde então, vem empreendendo diferentes investigações sobre o tema, inclusive com realização de pesquisas.
O objetivo é apontar os diferentes tipos de violência sofridas pela população LGBTQIA+ e propor políticas públicas de enfrentamento. O Grupo de Trabalho é composto por oito representantes do MDHC e mais 17 da sociedade civil.