HIV em pauta

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Genilson Coutinho,
30/09/2025 | 22h09

O desmonte silencioso do financiamento internacional voltado para o enfrentamento do HIV/aids pode colocar em xeque quatro décadas de avanços sociais, científicos e políticos. O alerta foi dado na manhã desta terça-feira (30), durante o seminário “Financiamento e Sustentabilidade na Resposta Global ao HIV/Aids”, promovido pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), no Rio de Janeiro, em formato híbrido.

O debate de abertura reuniu Richard Parker, diretor-presidente da ABIA, Jane Galvão, pesquisadora e integrante do Conselho de Curadores da instituição, e Veriano Terto Jr., vice-presidente. Juntos, apresentaram a publicação “Uma Análise Crítica das Tendências de Financiamento Internacional para Atividades em HIV e Aids (1981-2022)”, resultado de uma investigação de mais de dois anos sobre a trajetória de recursos que sustentam a resposta global à epidemia.

“O campo da aids vive uma ameaça sem precedentes”

Em tom grave, Richard Parker abriu o encontro ressaltando a conjuntura de retração. Para ele, os recursos que sustentaram políticas públicas, pesquisas e organizações da sociedade civil entraram numa espiral de declínio iniciada nos anos 2010 e que atingiu seu ponto mais crítico durante a pandemia de COVID-19.

“Quase todas as fontes de apoio foram interrompidas naquele período. O resultado foi devastador: vimos ONGs fecharem, projetos históricos serem paralisados e ativistas trabalharem no limite da sobrevivência”, afirmou Parker.

O diretor-presidente da ABIA sublinhou ainda a concentração de recursos em poucas fontes privadas ligadas ao chamado filantrocapitalismo — como a Fundação Gates — e a dependência excessiva dos Estados Unidos como financiador público global.

“Se algo muda no governo norte-americano, todo o campo de Aids no mundo fica em risco. E foi exatamente o que vimos se materializar com a volta de Donald Trump: cortes brutais que ameaçam não apenas o Brasil, mas sobretudo países africanos, onde a dependência é maior”, alertou.

Para Parker, o setor de HIV foi transformado em um laboratório do neoliberalismo em saúde. “A lógica do filantrocapitalismo não é apenas doar, é orientar prioridades, impor agendas, e isso compromete a soberania das respostas locais. Não podemos aceitar que o futuro da resposta global dependa dos interesses de meia dúzia de bilionários ou de um governo estrangeiro”, criticou.

Memória, política e cortes no Brasil

Coube a Jane Galvão situar o estudo num recorte histórico. A análise percorre cinco grandes períodos — dos primeiros anos da epidemia (1981-1990) até a fase recente (2020-2022), marcada por crises múltiplas e pela pandemia de COVID-19.

Segundo ela, o trabalho não se restringe a “contar dinheiro”, mas buscou mapear como decisões políticas moldaram a geografia do financiamento. “Não queríamos apenas mostrar gráficos de subida e descida. O essencial foi entender como cada mudança política, cada crise econômica ou sanitária, influenciou diretamente a sustentabilidade das organizações”, explicou.

Jane destacou que o recorte até 2022 foi deliberado: “Era o último ano com dados consolidados e também o fim de um ciclo trágico no Brasil, marcado pelo governo Bolsonaro e sua negligência criminosa diante da pandemia de COVID-19. Encerrar nesse ponto nos permitiu mostrar a profundidade do desmonte, sem cair em projeções sem base sólida”.

Ao revisitar os anos 1990 e 2000, a pesquisadora lembrou o impacto decisivo do empréstimo do Banco Mundial, que impulsionou a resposta brasileira e deu projeção internacional ao Programa Nacional de Aids. “Foi um divisor de águas. Mas, desde os anos 2010, o discurso de ‘fim da Aids’ esvaziou a urgência e afastou doadores. Hoje, esse vácuo é sentido de forma cruel pelas organizações da sociedade civil”, concluiu.

Desigualdade e erosão das conquistas

O vice-presidente da ABIA, Veriano Terto Jr., destacou como a retração atinge de forma desigual os diferentes atores da resposta.

“As grandes instituições ainda conseguem algum fôlego. Mas são as ONGs/aids, sobretudo as que atuam com populações mais vulneráveis — gays, travestis, pessoas vivendo com HIV — que estão pagando o preço mais alto. É um cenário perverso: justamente quem sempre sustentou a linha de frente agora é empurrado à margem”, disse.

Ele lembrou que a sociedade civil foi protagonista da construção do SUS e da garantia do acesso universal ao tratamento antirretroviral no Brasil, mas que hoje sofre com a precarização. “Se não houver um esforço consciente para diversificar fontes, fortalecer a cooperação Sul-Sul e reconstruir a solidariedade internacional, veremos a erosão das conquistas históricas. O risco é real: podemos retroceder décadas em pouco tempo”, advertiu.

Um debate político global

O estudo apresentado pela ABIA não é apenas um registro técnico: é uma denúncia política. Mostra como a resposta global ao HIV foi moldada pela Guerra Fria, pela globalização neoliberal, pelas oscilações do mercado financeiro e, mais recentemente, pelo avanço do autoritarismo de líderes como Jair Bolsonaro e Donald Trump.

Entre os anos 2000 e 2010, o HIV foi motor da expansão do conceito de “saúde global”, impulsionando novos fundos multilaterais e parcerias público-privadas. Mas, nos anos seguintes, a narrativa do “fim da aids” esvaziou o tema, redirecionando doadores para outras emergências, como a crise climática e a COVID-19.

“O resultado é o que chamamos de ‘tempestade perfeita’: crise econômica, cortes políticos, novas pandemias e a concentração do financiamento nas mãos de poucos atores. Isso ameaça não apenas a luta contra a aids, mas todo o campo da saúde global”, resumiu Parker.

A urgência de reconstruir a solidariedade

Os especialistas convergiram numa mensagem: é preciso reconstruir o espírito de solidariedade e justiça social que marcou os anos iniciais da epidemia.

“A resposta à aids nunca foi apenas biomédica, sempre foi política e comunitária. Se perdermos isso, não teremos apenas falta de recursos, teremos um vazio ético”, disse Jane Galvão.

Veriano completou: “Precisamos mobilizar de novo, articular novas alianças, inclusive com outras agendas como clima e direitos humanos. Só assim teremos força para enfrentar a tempestade”.

Para Parker, a tarefa é clara: “Ou recuperamos a solidariedade e a noção de justiça social como valores centrais, ou assistiremos a um retrocesso histórico. O campo da aids vive uma ameaça sem precedentes, e enfrentá-la exige coragem política e mobilização global”.