Gênero e masculinidades negras na experiência escolar é tema do novo livro do Almerson Cerqueira
Psicólogo, escritor e Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), Almerson Cerqueira, 37 anos, conversou com o Dois Terços e falou um pouco sobre sua trajetória e seu recém lançado livro “Entre afetos e rejeições: gênero e masculinidades negras na experiência escolar”, (Ed. Queer Livros), fruto da sua dissertação de mestrado. Mestrado.
DOIS TERÇOS: Para começar, fala um pouco sobre sua história. Quem é Almerson Cerqueira Passos?
AMERSON CERQUEIRA: Eu sou um homem negro, homossexual, 37 anos, taurino, casado com Marcelo Alison, candomblecista, iniciado para o culto Oxóssi no Ilê Axé Omin Ifan, terreiro liderado por minha avó materna e Iyalorixá Maria Luiza. Sou psicólogo, escritor, atuo na clínica há mais de 5 anos, sobretudo com as questões de gênero, sexualidades, raça, ancestralidade e masculinidades, temáticas essas que falam sobre o meu desejo de pesquisa, assim como lugar de existência no mundo. As palavras são minha amiga, lugar por onde enxergo melhor o que me atravessa, o que me interdita e o que me liberta. Almerson é uma pessoa cismada, feiticeira, astuta, amiga, desconfiada como um exímio caçador, disciplinada, que por vezes cospe fogo quando precisa lidar com as injustiças. Sou o filho mais velho de três, filho de dona Nildinha e seu Almir.
DT: Você é soteropolitano?
AC: Sim, nasci e me criei no Subúrbio Ferroviário de Salvador, no bairro de São João do Cabrito, em Plataforma, onde vivi até meus 23 anos. Tive uma infância muito movimentada, de rua, alegre, lúdica. Sou da época do fura-pé, garrafão, gude, bate-lata, amassa tomate, ABC, sete pedrinha, baleou, da rua mesmo! Mas também fui atravessado pelas narrativas de violência por ser uma criança viada.
DT: Essa questão de preconceito durante a infância e adolescência afetou muito a sua vida?
AC: Muito! Feridas cuidadas produzem cicatrizes. Acredito que, mesmo com diversas elaborações e muita terapia (risos), nossos corpos têm memórias e marcas de uma história, essa trajetória que nos compõe. Tive uma infância vivida, na rua, nas descobertas, mas fui uma criança periciada constante. Esse corpo negro que não podia viver livremente, atravessada pela “cisheteronormatividade” branca, pelo racismo, passou por diversos contextos de violência. Já na adolescência, fui um menino muito dedicado aos estudos e acredito que isso também foi uma estratégia de proteção que construí para lidar com as dúvidas alheias sobre a minha sexualidade. Sempre fui um jovem tímido, introspectivo e foi aí que encontrei nas palavras uma maneira de me entender, compreender as minhas emoções em meio às dores que permeavam o meu sentimento de inadequação, de não pertencimento.
DT: Se dedicar aos estudos e posteriormente escrever, para você, foi uma válvula de escape?
AC: Sim, as “escrevivências” me salvaram. É muito comum utilizamos algo como escudo, uma estratégia de autoproteção, principalmente quando nos sentimos ameaçados e eu construí essa dinâmica psíquica desde muito cedo. Acredito que essa estratégia também me fez compreender que, para além dessa autoproteção, eu poderia ter autonomia em algum momento da vida. Estudei todo o meu ensino fundamental e médio na mesma escola, no colégio Bertholdo Cirilo dos Reis, onde tive o prazer de construir grandes relações e ambientes importantes de afeto e aprendizado. E foi justamente por ter sido uma experiência que me marcou tanto, que decidi realizar minha pesquisa de mestrado sobre experiência escolar, gênero e masculinidades negras nessa mesma escola.
DT: Mas em especial, vejo que escrever te ajudou muito. Nesse sentido, tem alguma referência na família?
AC: Acredito que, para além de encontrar acolhimento e conforto nas palavras, o que me levou a construir essa conexão foi a identificação com a minha mãe, Dona Nildinha. Sempre ouvi dizer de minha avó, a sua mãe, que minha ela era uma excelente aluna, que chegou a cursar magistério e tinha uma letra linda (de fato, tinha mesmo). A minha relação com ela sempre foi muito importante, genuína e de muito amor, e acredito que isso me aproximou de suas habilidades e potencialidades. Costumo dizer que minha mãe é um presente de Oxum nesta vida, onde nunca deixei de ter o seu apoio e incentivo.
Desde cedo, as palavras me seduziram. Comecei a escrever para me libertar e depois de um tempo, me vi criando um blog, que na época se chamava “intersubjetividades”, em 2008-2009, e nunca mais parei. Participei de publicações literárias diversas e fui amadurecendo a minha escrita com o tempo. A escrita, acredito eu, é um devir, um processo que a gente vai se apropriando e te reconhecendo a medida que nos aceitamos.
DT: E quando nasce o Almerson escritor?
AC: As “escrevivências” estão em mim desde cedo, acredito. Me criei em um contexto de núcleo familiar muito disfuncional, turbulento e bagunçado. Tenho memória que, quando criança, tentava escrever o que se passava dentro de mim e o porquê de vivenciar situações familiares delicadas. Criei uma espécie de bolha com as palavras, e confesso que consigo dimensionar hoje o quanto isso me atravessou. Mas foi em 2020, numa parceria com a editora Queer Livros, na figura do Gilmaro Nogueira, que tive a oportunidade de colocar em prática um projeto que há muito tempo estava em meus planos: escrever um livro de poesia que articulasse ancestralidade africana, Candomblé, afetividade e raça. Foi com esse propósito que publiquei o meu primeiro livro “Águas de um Orí: Escritos de uma Vida”, obra que estabeleceu um marco na minha maneira de produzir “escrevivências”, fruto dos meus escritos publicados no Instagram desde 2019, que também me lançou no mercado literário. Uma obra bem aceita pelos leitores e leitoras, que me abriu algumas portas e encruzilhadas. Falar sobre as emoções, complexidades, saúde mental e sentimentos de pessoas pretas, neste livro, sobretudo, me autorizou a realizar novos mergulhos em mim mesmo. Até hoje, sinto a força e potência desses escritos, com pessoas procurando por este livro, nos feedbacks que ainda recebo, e acredito que isso me faz acreditar nas teceturas do meu destino. Falar de mim é também falar de nós, por nós e para nós. Costumo dizer que escrevi com a ponta da navalha, porque não tenho o objetivo de ninar a estrutura hegemônica com os seus sonos injustos. É um livro que estabelece um lugar crítico que eu no abri mão: a ancestralidade africana como possibilidade de um resgate histórico. A literatura nos permite recontar as histórias inventadas sobre nós, sobre o nosso povo e os nossos ancestrais. A literatura é, para mim, um fundamento político e de consciência sobre quem sou e como quero contar a existência do meu povo.
DT: E seu mais recente trabalho, “Entre afetos e rejeições: gênero e masculinidades negras na experiência escolar”?
AC: Sim, esse é o meu segundo filho (risos), que tenho muito orgulho de ter gostado e parido, apesar de tantos desafios enfrentados. Mais um livro lançado pela Editora Queer Livros e espero que ele possa ajudar não só aos jovens negros, mas aos profissionais de educação, professores(as), equipe pedagogia e toda a instituição escolar, desconstruindo os estereótipos e facilitando itinerários formativos no contexto escolar.
DT: Conta um pouco desse desafio pra nós.
AC: Essa obra traz um mergulho sobre como jovens, principalmente jovens negros, borram as fronteiras do racismo, da LGBTQIAPN+ fobia e do cisheteropatriarcado branco. Neste livro, a partir de um olhar etnográfico, articulo estudos de gênero, raça, sexualidades, masculinidades negras e territorialidade para compreender como esses(as) estudantes constroem estratégias de enfrentamento diante das opressões sociais, (re)existências e sociabilidades na experiência escolar.
DT: Como foi o processo de pesquisa para esse segundo projeto?
AC: Importante salientar que eu retorno para a escola que estudei durante toda a minha vida para realizar a pesquisa, com o objetivo de compreender as dinâmicas juvenis depois de quase 15 anos, quando terminei o ensino médio, em 2005.
DT: O que representou para você esse retorno?
AC: Acredito que o meu retorno tenha sido uma espécie de abraçar a minha comunidade do Subúrbio Ferroviário de Salvador, dar um retorno social e político para um território socialmente esquecido pelo Estado. Também entendo que mergulhar, etnograficamente, naquele contexto de pesquisa, foi uma maneira de acessar e ressignificar a trajetória de um jovem negro tímido, assustado e ferido, que precisou construir uma encruzilhada clandestina dos seus desejos em relação a sua sexualidade.
DT: Onde “Entre afetos e rejeições: gênero e masculinidades negras na experiência escolar” pode ser adquirido?
AC: Ele pode ser adquirido no site da Queer Livros: www.queerlivrilos.com.br, como também pela Amazon ou em contato diretamente comigo pelo meu Instagram “Águas de um Orí”.
E que esse ebós epistemológico e literário possam fertilizar as nossas cabeças.