Depois de quarenta anos de epidemia de HIV/aids, o Brasil segue falhando na prevenção e no tratamento de pessoas indígenas, principalmente entre os jovens, é o que acredita Ana Acauã, mulher indígena, presidente e cacique da Associação Indígena Acauã na região de Manaus – AM.
No Brasil, o primeiro caso de aids entre indígenas foi registrado em 1987 e até 1999 se tinha conhecimento somente de 33 casos. Entre 2000 e 2017 o número saltou para 1.042.
Podemos associar este aumento à diferentes fatores, como: disparidades sociais, econômicas, o processo histórico de opressão cultural, conflitos e falta de acesso aos serviços de saúde.
Houve também diminuição ao longo dos anos no investimento nos cuidados com a saúde da população indígena por parte do governo federal. Em 2017 gastava-se quase 2 bilhões de reais, em 2018, houve redução de 15% e em 2019 o valor aplicado caiu para 1,4 bilhão de reais.
Os dados comprovam a narrativa de Ana Acauã que entende que a saúde de pessoas indígenas não é tratada como prioridade no país. “Nós não somos recebidos pela saúde, não somos incorporados de fato nesses direitos’’.
A cacique lamenta que a informação sobre a doença ainda seja muito restrita entre seus povos.
Saúde mental
Ana acredita que o fato de os povos não saberem lidar com o vírus, tem provocado agravos na saúde mental e os jovens têm sido o público mais impactado pelas consequências físicas e psíquicas que a aids traz.
“Há um índice muito alto de suicídio entre os nossos jovens, o fato de não terem conhecimento de que existe prevenção, tratamento e que é possível viver com o vírus vem causando aumento no consumo de bebidas alcoólicas. Esse é um dos motivos que agravam o quadro depreciativo e faz com que acabem se matando.”
Relatório emitido pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) apontou que o número de suicídios entre povos indígenas subiu 20% somente em um ano.
Segundo os dados coletados, 2017 registrou 128 óbitos que equivale à 2 suicídios a mais que o ano anterior.
O Ministério da Saúde aponta que o Brasil apresentou uma média nacional de 5,7 óbitos para cada 100 mil habitantes. Já na população indígena, foi registrado um número de óbitos três vezes maior que a média nacional.
Destes registros, 44,8% são suicídios de crianças e adolescentes com idades entre 10 e 19 anos. Ao contrário do panorama nacional, em que o maior índice é entre adolescentes e adultos de 15 a 20 anos.
Outro fator que contribuí no agravamento dessa situação, segundo a cacique Ana Acauã, é a vergonha que sentem a respeito de seu diagnóstico. “Até mesmo o homem branco que tem mais acesso à conhecimento e cultura esconde o diagnóstico, imagine os nossos que não têm’’, lamentou.
Ana aproveitou para denunciar a omissão da imprensa e a romantização a respeito da temática em campanhas publicitárias. “A mortalidade dos jovens é imensa, mas não se divulga, isto não é falado. Por vezes dizem que a saúde indígena está sendo contemplada e relatam de forma bonita, mas isto é bonito somente nas propagandas, porque a nossa realidade é muito diferente do que se mostra nas televisões e nas campanhas, a nossa realidade é muito triste”, advertiu.
Ela ainda chamou atenção para o fato de esta realidade precária atingir também os indígenas que vivem em áreas urbanas. “Nós índios urbanos que não moramos mais nas aldeias e nas reservas também não acessamos ações de saúde por não sermos aldeados. Muitos de nós não moramos mais nestes locais porque nossos pais, avós ou bisavós, tiveram que migrar para a grande cidade em busca de uma vida melhor.”
A promoção de saúde ainda é muito restrita para esta população, e quando a acessam, conseguem somente através do SUS (Sistema Único de Saúde), e além de todas as dificuldades que já encaram diariamente, ainda precisam enfrentar discriminação nos serviços de saúde.
Ana considera que, por muitas vezes, a abordagem de atendimento nos serviços de saúde é burocrática e desrespeitosa. “ A gente precisa ir até o SUS ou aos hospitais filantrópicos enfrentar fila, e ainda somos recebidos com discriminação. Diante disso, por exemplo, qual é a mãe que vai querer continuar levando seus filhos? Quando vão ao serviço de saúde não recebem ajuda”, indagou ela.
Juliana Correa, que também de Manaus e ativista do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas, concorda que uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos povos indígenas é o acesso a especialistas. “Geralmente aguardam 6 meses por uma consulta.”
Abordagem direcionada
Para Ana, a abordagem para o tratamento das pessoas indígenas deve ser especifica, considerando cada povo e a manutenção da cultura de cada etnia.
“Quando você vai falar sobre prevenção com as pessoas mais velhas, elas não aceitam, por exemplo, a camisinha. Por não terem acesso as formas de prevenções e não saber como utilizar o insumo, elas não acatam o que a gente fala e não aceitam facilmente que se converse com os meninos.”
Assim com Ana, Evalcilene Santos, que é uma mulher indígena, soropositiva, ativista do movimento de luta contra a aids, membra do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas, trabalha diretamente com os indígenas do Amazonas.
Ela acredita que trabalhar a comunicação da doença e a prevenção ao HIV entre os povos indígenas requer um cuidado específico, pois essa população é diversa e se trata muito com ervas medicinais, boa parte dela dispensa os antirretrovirais.
“Muitos não entendem que leva um tempo para que o organismo se acostume com os efeitos colaterais causados pelos antirretrovirais e abandonam o tratamento”, alertou.
De acordo com o último censo realizado, atualmente o Brasil conta com aproximadamente 900 mil indígenas por todo o país, e com cerca de 225 diferentes povos indígenas, além de referências de 70 tribos vivendo em locais isolados e que ainda não foram contatadas, apontou a Funai (Fundação Nacional do Índio). Mas líderes indígenas acreditam que esses números são subestimados e organizaram uma grande mobilização, convocando povos nativos de todo o país a se autodeclararem indígenas no censo de 2022.
Para superar os gargalos, Ana Acauã propõe espaços de diálogos claros, e com narrativas de inclusão, focados, principalmente, no público mais jovem.
“As ações precisam ser feitas com os adolescentes, são eles que precisam ter esse conhecimento, conhecimento este que as escolas, o governo, e até mesmo as igrejas são contra”. Ainda afirma que o discurso religioso fundamentalista na sociedade é mais um potencializador para que o debate não viabilize as mudanças necessárias.
Juliana Correa concordou e afirmou que o HIV ainda é um tabu para as pessoas indígenas, falar sobre HIV e sobre sexo é constrangedor para eles. “Existem mulheres que falam que estão fazendo tratamento de câncer para esconder o diagnóstico de HIV. Por falta de informação, o preconceito ainda continua matando.”
Avanços
Apesar dos pesares, a Ana acha que avançamos muito na pauta, regredimos em alguns pontos e nos mantemos estagnados em outros.
Embora Ana Acauã entenda que os avanços são passíveis de serem enxergados, mas enfatiza ser uma exceção à regra, pois a maioria dos seus iguais ainda estão muito longe de alcançarem as mesmas oportunidades.
“Precisamos de ações, de movimentos que se mexam para que unidos possamos levar esse conhecimento sobre a aids para os nossos jovens, para os nossos idosos e para as nossas famílias em geral”, finalizou.
Da Agência AIDS