Dia das Crianças: Superação e vontade de viver marcam a história da artesã Débora Gomes, que nasceu com HIV e ficou 1 ano e meio internada
Ela é artesã, apaixonada pela vida, pela arte, sempre está disposta a ajudar e a acolher o outro, já morou no hospital, fez várias cirurgias, é tímida, sonha em fundar uma ONG, ter filhos e acredita que com empatia e muita força de vontade é possível transformar vidas e sonhos. Essa é a história da jovem Débora Gomes, que nasceu com HIV e hoje tem 26 anos. Sua trajetória de superação e força integra uma série de reportagens da Agência Aids em homenagem ao Dia das Crianças, comemorado nesta terça-feira, 12 de outubro.
Nas últimas décadas a ciência tem demonstrado que o tratamento antirretroviral é altamente eficaz na redução da mortalidade por HIV/aids. O avanço tecnológico e a vontade de viver salvaram a vida de Débora, que venceu pneumonias e enfrentou muito preconceito por ser quem sempre foi: uma jovem cheia de sonhos, que vê no artesanato uma possibilidade de transformar o mundo.
Débora nasceu e mora até hoje em Tanabi, uma cidadezinha do interior de São Paulo. Para ela, viver com HIV sempre foi um desafio. Sua luta contra aids começou quando ainda era uma bebê, aos 6 meses. “Precisei de uma internação por conta de uma pneumonia e desidratação, fiquei no hospital mais ou menos um ano e meio, cheguei a ir para casa algumas vezes, mas não durou e voltei. Neste período, cai do berço no hospital e tive um trauma cranioencefálico (TCE). A partir daí, por alguns anos da minha infância, convulsionei. Foi justamente nesta época que precisei ser entubada, o que resultou em uma estenose de traqueia, também descobriram uma traqueomalácia, que é uma flacidez no tecido cartilaginoso traqueal. Precisei fazer uma traqueostomia, procedimento cirúrgico onde ocorre a abertura da parede anterior da traqueia. Fiquei com a cânula por um ano. Foi durante essa longa internação que os médicos descobriram o meu HIV, eu já estava na UTI.”
Estes não foram os únicos momentos de superação na vida de Débora. Aos três anos sua mãe morreu em decorrência da aids, partiu e deixou ela e seu irmão, que vive hoje na Bahia. “Minha mãe passou muito tempo acamada e veio a óbito. O meu pai também estava doente e debilitado, sem condições de cuidar de mim. Foi um momento bem delicado. A minha família biológica decidiu não me adotar, segundo os médicos eu ia viver no máximo até os dez anos.”
Diferente de muitas crianças com HIV que iam para casas de apoio, Débora foi adotada. “Um casal que já me conhecia e que tinha se aproximado da minha família há algum tempo me adotou. Vivo com eles até hoje e sou grata por terem me acolhido e por cuidarem bem de mim, e sempre estarem presentes em minha vida. Eles me presentearam com um lar e dois irmãos.”
Seu pai biológico está vivo, tem outros filhos e netos e Débora disse que vez ou outra ainda o encontra. “Moramos na mesma cidade e desde pequena ele sempre vinha me visitar. Hoje vem pouco devido ele ser de idade e não ter carro.”
HIV na infância
“Sempre falo para as pessoas que foi difícil crescer com HIV, na verdade é difícil até hoje viver com HIV. Além das inúmeras internações ao longo da minha infância, fui internada várias vezes durante toda a vida. Em janeiro de 2018, por exemplo, os médicos descobriram uma nova estenose de traqueia, precisei passar por novos procedimentos no centro cirúrgico. Houve um problema no meu quadro clínico e fui parar na UTI, depois disso tive que fazer uma nova traqueostomia. Cinco meses depois fiz uma cirurgia de reconstrução da laringe e traqueia que deixou sequelas, atrofiou as minhas pregas vocais e perdi quase toda a potência da voz, fiquei disfônica. Agora, aguardo por uma nova cirurgia para tentar dar uma melhorada nessa potência vocal.”
A descoberta
Ela tem HIV desde que nasceu, mas só soube do vírus aos 13 anos, quando decidiu ler os rótulos dos remédios que tomava. “Também li em um dos meus exames as palavras HIV e aids. Sempre fui muito curiosa e fui pesquisar o significado de tudo que tinha lido, não entendia porque tomava aquelas medicações. Busquei ajuda no ‘dr. Google’ e encontrei na internet todas aquelas fotos de pessoas em fases terminais, foi um choque. Parei de tomar as medicações por muitos meses até que comecei a adoecer e descobriram que eu tinha abandonado o tratamento. Foi aí que minha família e os médicos me contaram sobre o HIV. Eu lembro de a psicóloga contar a história do bichinho e dos soldadinhos que lutavam contra os bichinhos. A partir daí fui conhecendo e entendendo o que eu tinha.”
Direito ao sigilo
Nem todas as pessoas que vivem com HIV/aids falam abertamente sobre sua condição sorológica, o sigilo é um direito, mas nem sempre é respeitado. Débora contou que sua sorologia é aberta e que, por morar em uma cidade pequena, nunca teve direito ao sigilo. “Cresci ouvindo que todos já conheciam a história da menina que perdeu a mãe para aids, da menina que vivia doente e internada. Nunca tive o direito de escolher preservar a minha sorologia.”
Sua vida escolar também não foi muito fácil, ela sofreu discriminação algumas vezes por conta do HIV. “Nos primeiros anos da escola quando alguns pais descobriram a minha sorologia não queriam que os filhos tivessem contato comigo. Aconteceu também na igreja onde eu frequentava. A mãe de uma amiga descobriu que eu vivia com HIV e a proibiu de compartilhar copos e qualquer outro objeto pessoal comigo. A falta de informação e esse tipo de discriminação me acompanha desde sempre”, lamentou.
Outro episódio de preconceito que marcou sua vida foi quando decidiu namorar. “Hoje estou solteira, mas já tive um relacionamento há alguns anos. Ele terminou comigo quando contei sobre o HIV. Disse não estava preparado para um relacionamento assim. Fiquei triste, brava, as pessoas que vivem com HIV têm direito de amar, hoje, quem está em tratamento e tem a carga viral indetectável não transmite o vírus. Essa informação precisa ser compartilhada.”
Na faculdade, seu problema foi de saúde. Trancou o curso de pedagogia no último ano e não voltou mais. “Foi um pouco antes de descobrir a estenose, eu comecei ter crises de falta de ar. Daí acabei trancando a faculdade.”
Relação médico x paciente
Seu acompanhamento médico é realizado em São José do Rio Preto, também no interior paulista. “A relação com a minha médica é muito boa, demorei um pouco para me adaptar quando fui encaminhada para o atendimento adulto. Fiquei na pediatria até os 18 anos, então acabei criando um vínculo grande com a minha médica da infância, foi difícil a fase de transição. Até porque não tem nenhum preparo para essa fase, a gente completa 18 anos e simplesmente nos jogam lá com os adultos. Hoje, compreendo melhor a importância desta mudança e a minha relação com a infecto tem sido ótima, ela tem me ajudado muito, é humana e está sempre atenta a qualquer problema que eu tenho. Todas as vezes que passei por momentos delicados de saúde e que não consegui resolver na minha cidade, ela me ajudava de alguma forma. Sou muito grata pela equipe médica que eu tenho”
O artesanato salva vidas
Antenada e talentosa, ela encontrou na arte uma ferramenta potente para lutar pela vida e superar os desafios impostos pelo HIV. “Sempre fui muito ligada a arte, gostava de desenhar, costurar as roupinhas das minhas Barbies, e há pouco mais de dois anos descobri o EVA na espera de um retorno terapêutico. Com o tempo fui me encantando por esse mundo e então venho me aperfeiçoando a cada dia. As pessoas já estão me reconhecendo enquanto artesã e venho tendo retorno financeiro com a minha arte. Quando estou criando eu consigo me desligar do mundo e de todos os problemas, é algo que me traz tanta paz. Posso dizer que o artesanato tem me salvado todos os dias.”
Acolhimento
Há mais ou menos sete anos Débora estava no hospital onde faz tratamento e conheceu uma garotinha que estava internada. Ela descobriu que essa menina precisava de um transplante que só era feito fora do país. “Eu e outros voluntários nos mobilizamos para ajudar a pequena e sua família, conseguimos doações de roupas, alimentos, brinquedos e começamos a ajudar também financeiramente.”
Esse foi o start que Débora teve para colocar em prática uma das lições que aprendeu com a aids: o acolhimento. “A partir dela fui conhecendo outras famílias de crianças especiais e fui me envolvendo cada vez mais. Fomos criando vínculos com algumas dessas famílias, de fazer visitas frequentes, estar sempre presente. Hoje, fazemos arrecadações de leites, fraldas, alguns medicamentos, roupas, materiais hospitalares de uso continuo e demais necessidades e dividimos entre as famílias. ”
Sempre muito envolvida, ela acompanhou de perto a morte e algumas crianças com deficiência e acabou entrando em depressão. “Eram crianças com síndromes raras que morriam em pouco tempo. Hoje, estou me fortalecendo mentalmente para retomar este trabalho social. Fazendo coisas que eu amo, como os meus artesanatos, ouvir músicas, assistir séries e filmes. Sou muito caseira, mas sempre gosto de estar reunida com os meus amigos e com a minha família.”
Futuro
Questionada sobre o futuro, ela foi bem direta. “Quero poder retomar minha atuação no meu projeto social. Tenho no meu coração a vontade de futuramente nos tornarmos uma ONG. Também quero conseguir minha independência, conquistar um cantinho só meu, onde eu possa montar meu ateliê e viver do meu artesanato. Quem sabe futuramente constituir uma família, ter meus filhos. Não tenho grandes planos para o futuro o meu maior desejo é apenas ser feliz e ter saúde.”
Neste Dia das Crianças, Débora deseja que todas as crianças tenham uma infância com amor e saúde. “Vivo um dia de cada vez, tem aqueles dias difíceis que parece que não vou conseguir, mas Deus tem me sustentado e me dá forças para levantar e seguir em frente. Assim venho vencendo todas as dificuldades que encontro pelo caminho. Sempre na esperança de dias melhores!’’
“É muito bom ser criança, pois a criança consegue ser feliz e ser grata com muito pouco, e sempre ter a fé de que tudo é possível e que todos os dias é o melhor dia da vida! É ter a pureza no coração de perdoar mais do que brigar. Ser criança é o que nunca deveríamos deixar de ser! Que possamos todos os dias aprender a ser com os nossos pequenos”, finalizou Débora.
Agência AIDS