Há tempos não saia da sessão de um filme como sai desse Cabeça de Nego, dirigido pelo cineasta Deo Cardoso. O filme que continua nos cinemas em Salvador e estreou no GloboPlay, no dia da Consciência Negra, é do tipo de produção que provoca o espectador. Eu sai tremendo do cinema! Obviamente feliz por ver um produto de extrema qualidade dirigido por um homem preto nordestino, mas também por me envolver com a história, esquecer os aspectos técnicos, me deixar levar pelas ação na tela.
Saulo, personagem principal do filme, é aluno de uma escola publica da capital cearense. Em uma aula Saulo sofre racismo por parte de um colega, reage violentamente ao ato, é chamado atenção pelo professor e cai sobre ele a culpa pela confusão em sala. O professor pede para Saulo sair, este não sai. O aluno fica na sala, não sai da escola e como sua atitude é tida como “fogo de palha”, fica na instituição até a mesma fechar. Mas Saulo não sai, aproveitando para, com o celular, denunciar via redes sociais, o estado pífio que se encontra a escola.
Contar mais estraga a experiência. E pra mim, professor da rede pública, o filme me atingiu no coração inúmeras vezes. Eu já tive alguns Saulos como aluno, eu já fui a professora Elaine algumas vezes, batendo boca com professores tradicionais e retrógados ouvindo deles o velho argumento “Esse aluno aí não quer nada com a hora do Brasil” ou “Deixa pra lá, é caso perdido, vagabundo!”. Já vi brigas homéricas acontecer dentro de um colégio por união de estudantes vs corpo docente. A escola é um microcosmo da sociedade, o estudante chega ali para teoricamente aprender, mas poucos enxergam o lugar como uma mini selva.
O lado mais potente de Cabeça de Nego é trazer o jovem e principalmente a juventude preta para dentro do debate revolucionário. Enquanto Mariguella conserva sua negritude muito no protagonista apenas, o filme de Deo Cardoso explode isso em cada personagem. Pretos, pretas, heterossexuais, lGBTs, negros com inúmeros tons de pele escura, corpos, juntos em suas diferenças pela coletividade.
O ato final, mais precisamente a meia hora final, é de uma potencia artística, de um domínio técnico gigante. Mas também de uma tensão, algo entre a identificação do espectador torcendo pelos estudantes e a certeza, pelas experiências dos nossos dias, que aquilo tudo pode dar muita merda! Eu vi o filme no cinema, presenciei uma plateia agoniada, torcendo pelos jovens, querendo o mal dos vilões, ouvi gritos e torcidas. Quem foi um jovem participante de algum projeto contra injustiças sociais se vê na tela e a vontade é de entrar no filme e lutar junto.
O filme tem pontos negativos? Sim. A ambientação escolar muitas vezes é falha. O barulho da escola típico, a presença de mais estudantes afasta o colégio da tela da realidade. Também a falta de desenvolvimento de alguns personagens coadjuvantes amigos do personagem principal, poderia ajudar na identificação da plateia não só com Saulo, mas com todos! Nada que estrague a experiência total.
Cabeça de Nego é o primeiro filme de um cineasta incrivelmente talentoso. Tem assinatura, seu trabalho tem identidade, é bem cuidado, há compromisso por parte do elenco, da equipe. No final, com as luzes acesas, vem a certeza: A história de Saulo não é tão fictícia assim… há um Saulo dentro de cada um de nós… precisamos deixar esse menino revolucionário acordado e atento! Sempre! Coloque o seu Saulo pra fora e lute!
Filipe Cerqueira é diretor da SOUDESSA Cia de Teatro, historiador pela UNEB, realizador audiovisual pelo Projeto Cine Arts – UNEB – PROEX e apaixonado por cinema.