Atualmente, cerca de 920 mil pessoas vivem com HIV no Brasil. Dessas, 89% foram diagnosticadas, 77% fazem tratamento com antirretroviral e 94% estão em tratamento e não transmitem o HIV por via sexual por terem atingido carga viral indetectável.
Os números constam do último boletim epidemiológico de HIV/Aids, divulgado pelo Ministério da Saúde no último dia 1º, e revelam que o país não atingiu a meta 90-90-90 estipulada pelo Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids).
A meta 90-90-90 estabelecia que, desde 2015 até 2020, 90% das pessoas deveriam saber seu estado sorológico, bem como que 90% dessas pessoas estivessem em tratamento ininterrupto. Também 90% delas deveriam usufruir de tratamento capaz de fazê-las atingir a carga viral indetectável —em outras palavras, com supressão viral, se manteriam saudáveis e evitariam a propagação do vírus.
Em 2016, por ocasião da Declaração Política da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre o Fim da Aids, um conjunto de países havia se comprometido com as metas —um deles, o Brasil. Os dados de 2020, apesar de atingirem a meta apenas em relação aos pacientes indetectáveis, registraram ligeira melhora em relação ao final de 2019, quando se constatou que 81% das pessoas que vivem com HIV sabiam seu status sorológico, e mais de dois terços (67%) estavam em terapia antirretroviral.
Para especialistas ouvidos por VivaBem, o não cumprimento da meta pelo Brasil se deve, principalmente, ao teor das campanhas informativas que, em geral, ainda estão mais focadas no uso da camisinha que na propagação de informações relativas à prevenção combinada —quando se faz uso simultâneo de diferentes abordagens de prevenção (biomédica, comportamental e socioestrutural) aplicadas em múltiplos níveis (individual, nas parcerias/relacionamentos, comunitário, social) como forma de responder a necessidades específicas de determinados públicos e de determinadas formas de transmissão do HIV.
Pelos dados do boletim epidemiológico, a epidemia segue aquecida principalmente entre homens homossexuais e bissexuais, grupo que corresponde a mais de 51% dos casos novos de infecção pelo HIV no ano passado. É entre homens jovens, até os 29 anos, por sinal, que os novos casos ainda mais crescem.
“O Brasil se destaca na América Latina por seguir crescendo na epidemia de Aids entre um público jovem, masculino e homossexual, mas também entre heterossexuais. Paradoxalmente, o que não temos visto é a divulgação das profilaxias pré e pós exposição [respectivamente, PrEP e PEP]: a maioria dos jovens desconhece esses métodos gratuitos, que funcionam e que auxiliariam bastante em mais diagnósticos e tratamento precoce”, avalia a infectologista Lucy Vasconcelos, diretora da Sociedade Paulista de Infectologia.
“Estimular e empoderar o paciente para o autocuidado”
Médica de referência em genotipagem do HIV, epidemia que ela estuda desde os anos 1980, Lucy critica o tom de campanhas do governo federal que, “em tom quase impositivo”, colocam ao cidadão a necessidade de uso do preservativo sem que se informe, por outro lado, a existência de métodos de prevenção que têm gerado bons resultados.
“Graças aos métodos de prevenção combinada que atingimos a meta de 90% de carga indetectável, mas a primeira e segunda metas, até por falta de campanhas, seguem sem ser cumpridas”, analisou.
A médica destaca a importância de haver acessibilidade não somente para detecção do HIV, como também a compreensão de que, feito o diagnóstico, é importante se submeter ao tratamento para garantir qualidade de vida e também para não transmitir o vírus.
“O HIV aumentou 70% nos últimos anos entre a população de 15 a 24 anos. Há todo um trabalho para se fazer sobre o acolhimento dos diagnósticos e para entender a importância de fazer o tratamento correto e atingir a meta três, a qual, ainda assim, demanda um tratamento correto, ou o paciente não deixa de ser em detectável”, afirma.
“É impressionante verificar que, mesmo entre pessoas de nível universitário, ainda há quase completo desconhecimento sobre PEP e PrEP; ainda há muito diagnóstico tardio, quando já é baixa a expectativa de vida. Ainda é uma doença cheia de estigmas, daí a importância não só de diagnosticá-la, como de se fazer o tratamento com uma equipe multiprofissional e capaz de acolher o paciente”, define. “Precisamos estimular e empoderar o paciente para que ele sinta que é capaz de se cuidar; há que se incentivar o autocuidado.”
Relações “monogâmicas” ainda são polo de contaminação por HIV
O também infectologista José Valdez Madruga, coordenador do comitê de Aids da Sociedade Brasileira de Infectologia e consultor da entidade, alerta que uma das dificuldades do não cumprimento das metas um e dois está em relações monogâmicas nas quais os envolvidos não se entendem sob risco.
“Muitas vezes, são relações monogâmicas só de um lado; há muitos casos de pessoas que se contaminaram dessa forma. São casais homossexuais e heterossexuais que até começaram a usar preservativo quando se conheceram e que, à medida que vão aprofundando o afeto, acham que estão protegidos —até o momento em que descobrem que um dos parceiros se contaminou ou a contaminou”, analisa.
Madruga também observa que a falta de campanhas informativas focadas na prevenção combinada estão entre os principais gargalos para que a meta estabelecida pela Unaids ainda não tenha sido cumprida no Brasil.
“As pessoas não têm noção do risco e acabam não fazendo o teste; têm relação desprotegida com um parceiro conhecido [um amigo, um conhecido] e acham que não estão em risco”, destaca.
“Hoje temos medicamentos eficazes e protocolos de atendimento que possibilitariam um diagnóstico mais rápido e, por tabela, um tratamento mais efetivo. Se há falha em um ponto, isso acaba falhando nos demais”, pontua.
Indagado se o não cumprimento da meta no Brasil o frustrou, o profissional admitiu que não. “Quando essas metas foram criadas, pensava-se que seria possível controlar a epidemia; sempre fui muito crítico sobre isso: se sobram 10% [de 100%] de cada uma delas, isso, por si, já é suficiente para perpetuar a epidemia.
Precisamos cada vez mais trabalhar a testagem e conscientizar as pessoas de se conhecerem, fazerem o teste e, com isso, convencê-las do tratamento correto, mais adequado a elas”, defendeu.
Sobre as relações presumidamente monogâmicas, o infectologista sugere: além de ambos do relacionamento fazerem o teste de HIV, é necessário renegociar a relação, se for o caso. “Se vai ser fechada ou aberta, a relação precisa ser conversada a fim de que ambos possam se proteger”, conclui.
*As informações são do site Viva Bem.