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Ativistas e acadêmicos dizem que é urgente debater o envelhecimento e a qualidade de vida de pessoas travestis e transexuais no Brasil

Ancestralidade trans, memória, envelhecimento, políticas de reparação, sonhos coletivos de futuro… tudo isso fez parte de um amplo debate que aconteceu na última terça-feira (7), no Sesc Pompeia, em São Paulo. O Seminário Identidades Trans e Travestis, reuniu uma gama diversificada de pensadores, acadêmicos e ativistas para discutir questões relacionadas à identidade de gênero, e explorar a subjetividade trans a partir de uma perspectiva interseccional. A primeira mesa intitulada “Subjetividades Trans: Reflexões e Identidades”, com base numa abordagem interseccional, discutiu o assunto proposto reconhecendo que as experiências de pessoas trans não podem ser dissociadas de outras dimensões de suas identidades, como raça, classe social, orientação sexual, entre outros marcadores.

A mesa foi composta por Giovanna Heliodoro – mais conhecida como trans preta; Jonas Maria; Neon Cunha; com mediação de Barbara Iara.

Giovanna Heliodoro relembrou sua entrada anos atrás na universidade, onde cursou história e destacou que algo lhe intrigava: a linearidade que os fatos e contextos históricos eram narrados. Até mudar sua percepção do que é de fato o tempo, segundo Giovanna isto lhe demandou muito tempo de reflexão, mas destacou: “Eu passei a começar a entender a subjetividade de ficar velha, porque este não é um debate para a gente [pessoas trans e travestis], o nosso debate é sobre estarmos vivas”.

A historiadora e influenciadora digital ainda destacou que a convivência com travestis mais velhas e ‘de rua’, como ela mesma menciona, despertou em si um olhar atento a outras demandas. “Foi a partir disso que veio minha construção dentro da internet com o canal @transpreta”, compartilhou.

“Eu fui construindo as minhas experiências e meus sonhos dentro deste espaço virtual para o real e assim entendi que poderia compartilhar vivências de outras pessoas e fazer o principal que considero inclusive o mais difícil dentro de uma comunidade que é oprimida, que é fazer a redistribuição de protagonismos”, falou.

“Não é sobre pessoas trans sendo reconhecidas sobre o que fizeram [em espaços de poder], mas sobre o que essa beleza, esse corpo vai mudar na vida de uma pessoa que está na pista e sofre da violência diária”, continuou.

Barbara Iara provocou a discussão acerca da diferença entre vivências individuais e sonhos coletivos pensados para as pessoas trans masculinas. “Como é pensar a memória e poder planejar sonhos de futuro para as pessoas que virão depois de nós?”

Jonas Maria respondeu que pensar o futuro de pessoas trans masculinas é necessariamente começar a pensar sobre o tempo sob uma nova perspectiva, reforçando a contribuição anterior de Giovanna Heliodoro.

“Quem é trans tem a tendência de perceber o tempo de uma forma diferente; a gente tem a nossa vida datada estabelecida por marcos que são héteros, onde você nasce, tem uma infância, cresce, vai para a escola, consegue um emprego, casa, tem filhos e envelhece e começa tudo de novo, mas nesse tempo você consegue olhar para o passado e tem uma história sendo contada da sua família e você se vê. Nós pessoas trans não temos isso, existe uma defasagem na nossa história, até então não se sabia sequer da possibilidade de envelhecer como travesti […] quando vemos os dados tão violentos sobre a população que mostra que a idade média de mulheres trans e travestis no Brasil é 35 anos, então como é que a gente pensa uma vida de 35 anos? O que seria uma infância trans por exemplo, para uma pessoa que a expectativa de vida é 35? E se morre, 35 anos é velhice na idade travesti?”, questionou.

“Estamos falando de um grupo social que não tem a noção e o conceito de velhice”, afirmou destacando no contraponto que pessoas LGBTs pertencem a outros rituais de pertencimento social, de entrada na vida adulta e de luto.

Jonas Maria ainda falou sobre a chegada da internet na sua vida e o peso simbólico do que ela lhe possibilitou

“Eu, enquanto pessoa trans masculina, até então nunca tinha tido uma referência de pessoa trans que eu pudesse olhar […] as travestis têm uma tradição de uma transcestralidade que é mais visível, apesar de violenta, mas ao mesmo tempo que está se construindo no imaginário social inclusive do Brasil; infelizmente os corpos travestis estão reservados [socialmente] a determinados lugares, mas todo mundo sabe o que é uma travesti. Já nós pessoas trans masculinas não temos isso”.

Construção da identidade

Juntos, eles conduziram uma análise minuciosa e crítica sobre a subjetividade e a construção da identidade de gênero.

“Eu acreditei por muito tempo na medicina e nas pessoas que me socializam. As pessoas acreditavam que eu era algo, e eu tinha que performar algo. Quando eu entro em história, é justamente buscando entender quem eu era. E nesse momento passo pelo meu processo mais intenso de me expor. Ali dentro da faculdade, eu passo pela minha experiência de transição”, compartilhou Giovanna.

Seguindo a mesma linha de raciocínio sobre subjetividade trans e construção de identidade, no encontro, Neon Cunha se debruçou sobre a reflexão da desumanização da corporeidade travesti, criticando a educação hegemônica brasileira que exclui e mantém a manutenção do imaginário sociocultural. Ela propôs espaços de saber mais representativos e inclusivos de fato. 

“Vocês lembram de ter visto um corpo negro, indígena, asiático, corpos idosos, corpos com deficiência?”, provocou.

“A escola tem um papel fundamental de enfrentamento a todos os tipos de violência que as pessoas são submetidas; é na escola que se funde inclusive esse ideal do gênero, produziram um ideal de gênero que é branco, cis, jovem, com saúde reprodutiva e de capitania hereditária, porque vai ter que ter poder financeiro para fazer o que quiser […] A gente não tem mais como não discutir primeira infância e infâncias trans.”

A questão da auto identificação foi enfatizada no debate como um fator fundamental. Reconhecer que cada indivíduo é a melhor autoridade sobre sua própria identidade de gênero foi um ponto crucial citado por eles como estratégia para criar ambientes possíveis de pessoas trans sonharem. Ao reconhecer e abraçar a diversidade e a complexidade das identidades de gênero, o seminário delineou um caminho em direção a uma sociedade mais justa e inclusiva. 

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