Artista Micaela Cyrino doa obra ‘Soropositiva’ ao Ministério da Saúde e transforma vivência, arte e militância em enfrentamento ao estigma

Artista visual, arte-educadora e coordenadora da Rede Nacional de Jovens Vivendo com HIV e Aids doa obra icônica ao Ministério da Saúde e fala sobre memória, racismo, juventudes e a urgência de manter vivo o debate no Dezembro Vermelho.
Viver com HIV desde o nascimento moldou, muito cedo, a percepção de Micaela Cyrino sobre silêncio, medo e desigualdade. Hoje, artista visual, arte-educadora e coordenadora da Rede Nacional de Jovens Vivendo com HIV e Aids, ela transforma essa experiência em linguagem estética, política e pedagógica. No mês dedicado à luta contra o HIV, a aids e outras ISTs, Micaela doou ao Ministério da Saúde uma das obras de sua série Soropositiva, gesto que amplia o debate para a esfera pública e reforça a arte como ferramenta de enfrentamento ao estigma.
Ainda criança, Micaela não compreendia o que significava viver com HIV, mas já reconhecia, nos olhares e nos silêncios, que aquela condição carregava pesos construídos socialmente. Antes de ser palavra, “soropositiva” era uma atmosfera. Era aquilo que não se dizia. Hoje, mais de 20 anos depois, ela transforma esse percurso em arte e militância, dando palestras, acompanhando jovens e produzindo obras que atravessam saúde pública, direitos humanos e discussões raciais. Neste Dezembro Vermelho, sua doação ao Ministério da Saúde marca um encontro simbólico entre memória, resistência e política cultural.

A origem da obra emerge justamente desse enfrentamento ao não-dito:
“A obra nasceu de uma inquietação muito concreta: como uma palavra pode carregar tantos pesos, violências e silenciamentos ao mesmo tempo? Eu queria olhar para a palavra ‘soropositiva’ sem desviar o rosto. Queria trazê-la para o centro, sem metáforas. Ela já é contundente por si só. Se trata de uma condição, uma realidade direta.”, explica Micaela em entrevista à Agência Aids.
Escrita em vermelho sobre linho cru, a obra tensiona a delicadeza do material com a dureza histórica da palavra.
“Eu buscava provocar pertencimento, reconhecimento e responsabilidade. Conforto e segurança diante de uma condição tão silenciada. Queria que as pessoas percebessem que não dá mais para tratar o HIV como assunto distante ou técnico. Existe história, afeto, desigualdade e política dentro dessa palavra.”
A decisão de doar uma das peças ao Ministério da Saúde partiu de um impulso que mistura coerência, coragem e desejo de circulação.
“Fui movida por um desejo de colocar esse debate onde ele precisa estar: na esfera pública. Se a obra fala sobre estigma, cuidado e política de saúde, nada mais coerente do que ela estar dentro da instituição responsável por organizar esse cuidado no país. Essa obra é uma série; eu faço ela em grande escala. Desejo que ela esteja em vários lugares ao mesmo tempo.”
Para Micaela, ver o Estado acolher uma obra sobre HIV é, por si só, um gesto político.
“É potente — e raro — ver o Estado acolher algo que por muito tempo foi tratado a partir do medo e do moralismo. Politicamente, significa reconhecer que cultura também é instrumento de enfrentamento ao estigma. Artisticamente, é o gesto de romper com a ideia de que a arte sobre HIV deve ficar apenas em circuitos militantes ou marginais. É entender a possibilidade de diálogo sobre esse tema a partir da arte.”
A obra, exposta em um espaço institucional, muda o enquadramento do próprio debate.
“Quando uma obra ocupa um espaço oficial, ela muda o enquadramento do tema. Ela legitima a urgência do debate e cria brechas para diálogos que muitas vezes não acontecem na vida cotidiana.”
O gesto da doação começou de forma simples, mas se desdobrou em algo maior.
“A princípio, foi apenas um convite para participar da exposição. Eu que escolhi qual obra iria e decidi que seria interessante doar. É um entendimento de que a obra precisava circular em espaços públicos de relevância para a epidemia de aids, entendendo a importância da caminhada conjunta da militância e da arte.”

Para o futuro, a artista imagina caminhos em que a obra encontre pessoas, histórias e territórios diversos.
“Espero que ela circule em escolas, unidades de saúde, centros culturais e universidades. Lugares onde o debate sobre saúde pública, corpo e direitos humanos é urgente. Quero que ela encontre gente, gere incômodo e produza conversa.”
A escolha de Micaela por uma linguagem que coloca o corpo no centro da narrativa está diretamente ligada às desigualdades da epidemia no Brasil.
“Sem dúvida. O impacto do HIV entre pessoas negras e indígenas não é coincidência — é resultado direto do racismo estrutural. Ainda falamos pouco sobre isso, e quase nunca com a centralidade que o tema exige.”
Esse recorte racial aparece em sua obra como disputa de narrativa.
“Aparece quando eu coloco o corpo racializado como ponto de partida. Quando falo de acesso, de cuidado, de quem foi deixado para trás. O trabalho é, de certa forma, uma disputa por narrativa: lembrar que a epidemia nunca foi igual para todo mundo.”
Suas referências artísticas também reforçam esse olhar.
“A geração de artistas e ativistas que enfrentou a epidemia nos anos 1980 e 1990 — no Brasil e fora dele — me atravessa profundamente. As ações de ACT UP, as obras de Hélio Oiticica, Leonilson, Ronaldo Fraga, Rosana Paulino e tantos outros que tratam o corpo como território político também me influenciam.”
A doação ocorre justamente quando o Brasil celebra a eliminação da transmissão vertical do HIV, marco histórico da saúde pública.
“É um marco histórico e um lembrete de que políticas públicas importam — especialmente quando são contínuas, bem financiadas e territorializadas. Fico feliz, mas também vigilante: a eliminação precisa chegar a todos os territórios e populações.”
Quando questionada sobre a mensagem que deseja transmitir às pessoas vivendo com HIV, Micaela fala de afeto e pertencimento.
“Que ela é vista. Que sua existência importa. Que sua história não é sinônimo de silêncio, culpa ou isolamento. Que a palavra ‘soropositiva’ não precisa ser sinônimo de dor.”
E para quem nunca pensou sobre o tema, a resposta é um convite à responsabilidade coletiva.
“Que o HIV não é um fantasma distante. É parte da nossa história coletiva e das desigualdades do país. Olhar para isso não é um gesto de caridade — é um gesto de responsabilidade social.”, finaliza.