Ângela Roro : A artista que mais ousou no Brasil

Por Carlos Leal
Algumas estrelas da Música Popular Brasileira (MPB) ousaram ir de encontro ao sistema e enfrentar a sociedade por motivos diversos durante sua trajetória. Uma das mais ousadas, certamente foi Angela Maria Diniz Gonçalves, nossa querida Angela Roro. O nome Roro, por curiosidade, veio da sua voz grave, especialmente quando dava risada “rouca” ainda criança. Ousada igual a Angela, e que a inspirou, foi Maysa Matarazzo. Em alguns momentos a própria Angela já se declarou ser admiradora de Maysa, e fala dessa referência. Chegou a regravar Demais (Tom Jobim e Aloysio de Oliveira), grande sucesso da cantora de Meu Mundo Caiu. Mas, se por um lado, uma escandalizava a alta sociedade por ser casada com André Matarazzo, milionário que pertencia à nobreza paulistana, a outra ousou por gritar aos quatro cantos do mundo que era lésbica. Um ícone LGBTQIAPN+
Segunda Angela, ao se assumir lésbica, foi espancada quatro vezes pela polícia. Em uma das vezes, perdeu parte da audição e em outra , veio a cegueira de um olho. Em entrevistas, Angela conta ainda que sofreu agressões físicas entre 1981 e 1984 e em 1990, foi espancada por barras de ferro e cecetete. Motivo? Dizer que sentia desejo por outra mulher. Uma guerreira do mundo LGBTQIAPN+: não fugiu à luta e deu continuidade a sua trajetória.
Angela, não hesito em dizer, é uma das minhas artistas preferidas e das maiores interpretes e compositoras da nossa MPB. Canta e compõe com a alma e com o sangue baiano que corre em suas veias. Sim, a artista é de filha de pai militar baiano e mãe mineira. Após passar os anos 70 circulando no meio musical, para felicidade dos amantes da MPB, sai em 1979 sai o Álbum Angela Roro, um clássico da MPB. No trabalho, além do sucesso Amor Meu Grande Amor, parceria com Ana Terra e regravada anos depois pelo Grupo Barão Vermelho, Angela já deu seu recado em Tola Foi Você, composição da própria artista:
“Tola foi você ao me abandonar
Desprezando tanto amor que eu tinha a dar”
Roro chegava para conquistar seu lugar ao sol, com o diferencial de assumir sua sexualidade no gênero dos versos das canções. O ano de 79, aliás, foi um ano solar para a MPB, além de Angela, surgiram outras artistas ímpares, a exemplo de Fátima Guedes, Joyce Moreno e Marina Lima. Marina, por sinal, com seu disco Simples como Fogo, foi a primeira a gravar uma música de Roro, a bela Não há cabeça, regravada no mesmo ano pela própria compositora. Ainda em 79, a cantora Maria Bethânia grava Gota de Sangue, no álbum Mel. Ou seja, Angela estreava com o pé direito.
É de Ângela também outro grande sucessos de Maria Bethânia: Fogueira, lançado pela baiana em no álbum Ciclo, de 1983. Até hoje, uma das canções mais pedidas nos shows de Bethânia:
“Porque temer a tua fêmea
Se a possuis como ninguém
A cada bem do mal do amor em mim?”
Um fato curioso da história de Angela, é que a música Malandragem (Cazuza e Frejat) é que, por desejo de Cazuza, deveria ser gravada por Roro, mas ela não se identificava com a letra da música (Quem sabe ainda sou uma garotinha/ Esperando o ônibus da escola, sozinha…). Sendo gravada somente quatro anos depois da morte de Cazuza, por Cássia Eller, em 1994, no álbum que tinha o nome da artista.
O jornalista e crítico musical Antônio Carlos Miguel define Angela como “herdeira de Maysa e tutora de Cazuza” eu acrescentaria que Angela também bebe na fonte de Dolores Duran, outra gigante da MPB. Por falar nos atuais gigantes da MPB, hoje, virou moda e até Marketing algumas pessoas se dizerem da comunidade LGBTQIAPN+ para tocar, para ganhar seguidores... mas nem sempre foi assim. “Sofri muitos ataques homofóbicos, cheguei a ser estuprada. Me orgulho de ter sido pioneira, fui a primeira artista a se dizer lésbica no Brasil”, continuou Angela em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo.
Falar sobre a trajetória dessa artista ímpar é difícil. A história de Ângela merece um livro, que aliás, ela já está escrevendo. As polêmicas são muitas, mas prefiro falar da contribuição da artista para a MPB e para a causa LGBTQIAPN+. A única polêmica que citarei “de leve” é a história de amor com uma famosa artista, pois o desfecho rendeu, além de manchetes em jornais e matérias em revistas, uma pérola de Caetano Velloso, a música Escândalo, de 1981, que deu nome ao álbum e traz Roro em uma interpretação impecável.
“Rompe a manhã da luz em fúria arder
Dou gargalhada, dou dentada na maçã da luxúria, pra quê?
Se ninguém tem dó, ninguém entende nada
O grande escândalo sou eu
Aqui só.”
Outras canções que em muito contribuíram para romances da comunidade LGBTQIAPN+ são: Gata, Moleca e Ninfa, do LP A Vida É Mesmo assim, de 1984.
“Gata, moleque, ninfa, mina boa de chinfra
Que tem a mesma cor
De um luar minguante, mercúrio flamejante
É frio o teu ardor…
Vou ter compreensão soltar você da mão
Onde nunca pousou o teu coração”
Preciso tanto, 1980 canção de Angela que, certamente, embalou amores de LGBTs por pessoas indecisas:
“Eu quero na raça e no peito
Você quer saber se é direito
Primeira vez
Você diz que é bom mas não quer
Tem medo de virar mulher
Virar freguês”
De Chico Buarque, Angela deu voz a algumas canções, uma delas, Bárbara do álbum Só nos resta Viver, de 1980:
‘O meu destino é caminhar assim desesperada e nua
Sabendo que no fim da noite serei tua
Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva
Acumulando de prazeres teu leito de viúva”
Impossível contar as lutas, vitórias e sucessos de Roro em um texto. A figura da artista, as falas, as atitudes já são provas de sua resistência. Em uma segunda fase de sua vida, a artista enfrentou o sofrimento devido aos abusos etílicos e às decepções amorosas, o que refletiu na sua carreira. Enfim e para nossa felicidade, Angela largou o álcool e todas as outras drogas, incluindo o cigarro, emagrecendo mais de 50 quilos e voltando a compor pérolas. Essa fase ela fez questão de contar no álbum Compasso, de 2006:
“Estou deixando o ar me respirar
Bebendo água pra lubrificar
Mirando a mente em algo producente
Meu alvo é a paz”
Vida longa a essa estrela, que possamos ouvir novas baladas nessa vida cheia de dificuldades. Axé, Ângela.
Carlos Leal -Jornalista formado pela Universidade Tiradentes, Especialista em Marketing Digital, autor do livro infanto-juvenil Histórias de Dona Miúda: a Raínha do Forró (Ed.Pinaúna), co-autor do livro Cem Anos de Dorival Caymmi: panoramas diversos, em parceria com a Professora Dra. Marilda Santanna. Atualmente colabora com artigos e textos para O Dois Terços e para o jornal A Tarde e escreve duas biografias: da cantora alagoana Clemilda e da sambista baiana Claudete Macêdo.