A rotina de quem precisa conviver com o vírus da aids
A assistente social Maria (nome fictício) tem 35 anos e convive desde que nasceu com o HIV. A mãe morreu em decorrência da aids quando a menina tinha um ano e meio. Depois de ficar algum tempo com a avó, que não tinha condições de criá-la, ela foi para um orfanato. Maria não teria problema em revelar sua identidade se não fosse a discriminação que potencialmente enfrentaria, especialmente por trabalhar com o público – por conta desse estigma, só revela a condição de soropositiva às pessoas mais próximas.
Com carga viral indetectável há mais de dez anos, ela é casada com um homem que não tem o vírus HIV. “Antes de a gente aprofundar nosso relacionamento, contei a ele e expliquei a situação em detalhes. Ele respondeu que queria ficar comigo e isso nunca foi um problema.” O casal pode ter filhos, pois os médicos asseguram que não há risco de infecção no estágio em que Maria se encontra, mas ela enfrenta uma barreira psicológica para levar esse plano adiante. “É um receio que eu carrego comigo, mas acredito que vou superá-lo.”
Maria já chegou a tomar 12 medicamentos diariamente, mas hoje são apenas dois comprimidos à noite. Ela cuida bastante da alimentação, do sono e pratica exercícios, pois sabe que tudo isso também faz parte do tratamento. “Minha trajetória não foi fácil, mas me ajuda a olhar para a vida com gratidão e esperança. Muitas pessoas não tiveram a possibilidade de sobreviver ao HIV, a começar pela minha mãe.”
Ela teve acesso a um curso superior graças ao apoio oferecido pela Associação de Auxílio à Criança e Adolescente Portadores do HIV (AACPHIV), instituição de São Paulo que financia bolsas de estudo para jovens com o vírus. Fundada em 1989 por um grupo de médicos do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, a associação começou atuando de forma assistencial às famílias e depois, com a evolução dos tratamentos, focou na melhoria da qualidade de vida dos jovens por meio da educação.
“Trabalhamos com um público que soma os problemas típicos da adolescência ao fato de serem portadores do HIV, o que quase sempre envolve também uma família desestruturada”, diz a infectologista Marinella Della Negra, líder da instituição e reconhecida como uma das precursoras do combate à aids no Brasil.
Entrevista:
Vanessa Strelow Médica infectologista em Curitiba, especializou-se no atendimento a pessoas com HIV – acompanha cerca de 400 pacientes em seu consultório
O que significa ter HIV hoje?
É uma condição crônica, como várias outras com as quais as pessoas convivem, a exemplo de hipertensão e diabetes. Hoje, graças à evolução da ciência, as dificuldades relacionadas ao HIV estão mais no estigma do que propriamente no quadro clínico, desde que haja diagnóstico precoce e tratamento e acompanhamento adequados.
Como é o acompanhamento de um paciente com HIV?
Quando se chega à carga viral indetectável, ou seja, quando o remédio controlou o vírus, é necessário seguir com o tratamento recomendado e fazer consultas periódicas. A maioria dos pacientes precisará de uma consulta a cada seis meses. Com o tratamento adequado, as pessoas podem levar uma vida normal. Inclusive ter filhos, sem risco de transmissão vertical, de mãe para bebê. É claro que, entre uma consulta e outra, eventuais intercorrências podem exigir atenção.
O que se diz a quem recebe o exame positivo para HIV?
O primeiro ponto crucial é informação. Explicar o que isso significa, as opções de tratamento, enfatizar que é possível viver bem com o HIV, desde que o acompanhamento adequado seja mantido. Recomendo que a pessoa converse com os últimos parceiros, para avisá-los, mas sem a intenção de “descobrir” de onde veio o vírus. A ideia é olhar para a frente, para as perspectivas de futuro. Oriento também as maneiras de prevenir a transmissão do HIV para outras pessoas e de como se prevenir de outras infecções.
Em relação a falar ou não para um parceiro sexual sobre ter o vírus HIV, qual a orientação?
Essa é uma decisão individual, desde que a parceria sexual não seja colocada em risco. Existem maneiras eficazes e seguras de garantir que a outra pessoa não tenha o risco de infecção, como a pessoa que vive com HIV estar indetectável, o uso de PrEP pela parceria, o uso de preservativos. O mais importante é a consciência de que as pessoas precisam ser protegidas da infecção por meio de métodos eficazes.Fonte: Estadão
