Diversas famílias, famílias da diversidade
Por Bethânia Ferreira
A minha visão sobre a comunidade LGBTT e seus direitos deve ser diferente da maioria das pessoas. Não se assustem! Eu explico o motivo dessa fala e, por favor, leiam antes de julgar o fato de a minha percepção ser diferente. Minha percepção é diferente da percepção dos membros da comunidade LGBTT, minha percepção é diferente dos familiares de uma pessoa gay, lésbica, bi, travesti ou transexual e se afasta, totalmente, daqueles que ignoram ou odeiam a população LGBTT, conhecidos como homofóbicos.
Minha visão é pragmática, absoluta, não existe espaço para discussão. A população LGBTT possui os mesmos direitos fundamentais, liberdades públicas, direitos sociais, econômicos e culturais que qualquer outro indivíduo. Defendo da mesma forma outros grupos vulneráveis. As pessoas, todos seres humanos, possuem direitos iguais e ponto. Para mim, o ponto é final. É meu trabalho, lido com fatos, com racionalidade. Interpreto leis, formulo ofícios e petições sem fugir, um milímetro sequer, dos princípios de que todos são iguais e por isso devem ter os mesmos direitos garantidos.
Não pensem que sou uma tecnocrata, sem emoções ou que apenas cumpro meu trabalho burocraticamente. Quem me conhece sabe, sou apaixonada pelo meu trabalho. E, não raro, a emoção permeia o meu cotidiano.
Quando fui convidada para participar de uma mesa redonda por este site, com a participação de diversas mães que possuem filhos gays, eu levei um choque de realidade. Ouvi relatos tão emocionantes. Ouvi relatos do momento do descobrimento que o filho seria gay ou a filha lésbica, ou ainda, que o filho que teria nascido biologicamente como do sexo masculino, na verdade, possuía identidade de gênero feminina.
Eu demorei um tempo naquele dia para desmontar minha postura pragmática e ouvir o que aquelas mães estavam falando. Suas dúvidas, seus medos. O susto da descoberta, algumas relatando que viveram momentos de depressão. Eu, ouvindo todas as falas, pensava: “Como assim? Elas são mães desses rapazes e moças, não podem sofrer assim. Devem ser fortes e apoiar os filhos”. Foi uma aula de vida em quinze minutos. Óbvio que elas poderiam sentir tudo isso. Eu, de forma ignorante, queria que elas agissem com o mesmo pragmatismo que tenho no meu trabalho.
Depois daquele dia fui convidada por Inês Silva, do Grupo Mães da Diversidade Bahia, para participar e me engajar nesse grupo. Aceitei o convite. Comecei a conhecer melhor como são essas famílias, como se comportam na intimidade as famílias homoafetivas. Ganhei uma parte de emoção para o meu trabalho.
Recentemente, fui convidada pelos grupos Mães da Diversidade e Família de Todo Jeito para participar da campanha “Família fora do armário”. O objetivo da campanha é sensibilizar e fazer um chamamento de famílias homoafetivas e famílias que tenham como um de seus membros uma pessoa LGBTT, para que “tomem as ruas”, redes sociais e não se escondam no armário da vida, mas que mostrem a toda a sociedade que família não tem forma ou fórmula pré-definida.
É precioso mostrar para todas as famílias que todos os tipos de família podem existir. Mostrar que família não é pai, mãe e filhos. Família é união por afetividade. Mostrar para os arautos da moralidade, da família brasileira, que família homoafetiva ou família que tenha um ou mais membros LGBTT são famílias do mesmo jeito.
Alguns podem estar se perguntando sobre o que tem isso de relação com o mundo do Direito. Meus caros, minhas amigas, tem muita pertinência sim. As normas garantidoras de Direito possuem dois momentos distintos. O primeiro momento, no caso de uma lei, é o momento da produção legislativa. Trata-se da proposição de um projeto de lei, sua tramitação por várias comissões e pelas casas do Congresso Nacional, votação, sanção ou veto. Todo esse trâmite legal é um longo processo de interesses e concepções ideológicas e filosóficas.
No Brasil, infelizmente, temos vivenciado a forte influência religiosa na proposição e votação, por certos parlamentares, nos projetos de lei. Digo infelizmente, não porque não respeito a religião alheia, mas por saber que em Estado laico ela não pode interferir ou determinar a construção de uma legislação.
Quando uma lei entra no nosso ordenamento jurídico, ou seja, quando está valendo, passamos para um segundo momento em que os operadores do Direito – juiz, defensor público, promotor e advogado – interpretam a lei e começam a utilizá-la na prática. O Supremo Tribunal Federal, quando decidiu sobre a possibilidade da união estável homoafetiva, não mudou a lei, somente a interpretou conforme a Constituição. Disse: a Constituição Federal não me fala que só existe união estável de homem e mulher, então posso ter uma união estável de pessoas do mesmo sexo.
Mas o que a campanha “Família fora do armário” tem com isso? Quando as famílias se mostram e lutam pelos seus direitos, elas conseguem sensibilizar mais que outras famílias. Quando uma mãe fala, ela pode sensibilizar mais que uma outra mãe. Recentemente, vencemos uma enquete pública do Congresso Nacional e mostramos que o Brasil NÃO quer que o conceito de família seja restrito ao que está previsto no PL n. 6.583/2013, que pretende criar o Estatuto da Família. Essa mobilização é muito importante no momento de votação de uma lei.
Mães, pais e avós têm o poder de sensibilizar a sociedade. E a opinião da sociedade importa, a opinião da sociedade pode construir um mundo mais justo para todos, e um mundo mais justo pode minorar a homofobia. É um processo de construção por justiça e igualdade.
Doutora Bethânia Ferreira é Defensora Pública do estado da Bahia.