Sem liberdade de ir e vir, mas com direitos sim, senhor
Por Bethânia Ferreira
Era uma tarde de agosto de 2014, no auditório da Escola Superior da Defensoria Pública, onde estavam presentes Defensores Públicos, sociedade civil organizada do movimento LGBTT, acadêmicos, diretores, psicólogos e assistentes sociais de unidades prisionais, representantes de diversas secretarias de estados e militantes. Todos ali reunidos com um propósito discutir e otimizar a implantação dos direitos da população LGBTT no sistema penal baiano.
A manhã fora bem proveitosa. No início da tarde, o professor Gilmaro Nogueira tinha dado uma aula sobre gênero, orientação sexual, identidade de gênero e sexualidade, mas, apesar do avanço nas discussões, algumas pessoas ainda estavam reticentes sobre a implantação de alas separadas para a população LGBTT, preocupados com a possibilidade da criação de “ilhas de conforto” em um ambiente no qual impera a superpopulação carcerária.
Mas um depoimento foi o divisor de águas naquela tarde. L. M., interno do Presídio Salvador – levado ao evento pela Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização, para apontar as dificuldades de uma pessoa pertencente à comunidade LGBTT num ambiente tão masculino como o de uma unidade prisional –, relatou os casos de abuso sexual, maus tratos, ameaças, intolerância e discriminações sofridas nesses espaços de detenção. Ouvir aquelas palavras, por vezes pronunciadas de forma inadequada aos padrões da língua, foi mais forte que qualquer legislação, texto ou estudo sobre o tema. Com naturalidade, L.M. nos mostrou a necessidade de implementação de direitos específicos para a população LGBTT nas unidades prisionais.
Não preciso descrever como o sistema prisional é um ambiente difícil, cheio de especificidades e deficiências e extremamente machista. Atuei como Defensora Pública de Execução Penal por mais de quatro anos, portanto pude ver e vivenciar muitas histórias. Não é fácil. A falta de liberdade é o estopim da tristeza, opressão e diversas outras mazelas. Com isso, fez-se necessária a especificação da proteção dada à população LGBTT no âmbito das unidades prisionais, assim como se faz aqui dentro.
Apesar de alguns estados terem saído na frente, a regulamentação nacional sobre o tema se deu em abril de 2014, com a expedição da Resolução Conjunta n. 01 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT, que estabeleceu os parâmetros de acolhimento de LGBT em privação de liberdade no Brasil.
O tema ficou mais “famoso”, quando se falou em adoção de alas especiais para a população LGBTT nas unidades prisionais, mas a Resolução trata ainda de outros direitos e da garantia da autonomia da população LGBTT privada de liberdade. Segundo a Resolução, entende-se por LGBT a população composta por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, especificando cada uma delas.
A Resolução supracitada garantiu ainda o direito da pessoa travesti ou transexual em privação de liberdade de ser chamada pelo seu nome social, com o qual se identifica e é identificada em seu meio social, de acordo com o seu gênero. Da mesma forma, o registro de admissão no estabelecimento prisional, prontuário, ficha médica e escolar, bem como todos os relatórios psicossociais na unidade prisional deverão conter o nome social da pessoa presa.
Atualmente, ainda se garante à pessoa travesti ou transexual em privação de liberdade, de acordo com o gênero, o uso de roupas femininas ou masculinas e a manutenção de cabelos compridos e todas as demais características secundárias, próprias da sua identidade de gênero. Em relação ao tratamento e ao acompanhamento de saúde, inclusive de processo transexualizador, restou garantida sua manutenção à pessoa travesti, mulher ou homem transexual em liberdade.
As visitas íntimas também são garantidas à população LGBT nas unidades prisionais. Outrossim, o auxílio reclusão, que é um benefício legalmente devido aos dependentes de trabalhadores em situação de privação de liberdade que contribuem para a Previdência Social e encontram-se no regime fechado ou semiaberto, é devido aos companheiros ou cônjuges de uma união homoafetiva.
No que tange ao atendimento da saúde, devem ser observados e atendidos os parâmetros da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT e da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional – PNAISP.
As alas LGBTT, como são popularmente chamadas, bem como a criação de espaços específicos de convivência para essa população, devem ser garantidos como forma de evitar abusos e violências. Assim, impõe-se a criação desses ambientes, contudo a transferência da pessoa travesti ou gay para esse espaço específico deve ocorrer por opção voluntária e expressa – garantindo inclusive que seja formal, – evitando-se que a pessoa travesti ou gay, que não se sinta ameaçada, seja compelida a estar em uma ala onde não deseja estar ou se separe de algum relacionamento construído no interior da prisão. Igualmente existe a proibição expressa da transferência para a ala LGBTT, na condição de castigo, medida disciplinar, qualquer método coercitivo ou imposição de pena.
As transexuais femininas devem ser custodiadas em unidades femininas, assim como os transexuais masculinos. Tal medida em relação aos transexuais masculinos se dá em razão da possibilidade da ocorrência de violência sexual no interior das unidades prisionais, portanto, reveste-se de um caráter de proteção.
A Resolução conjunta ainda determina que o Estado promova a capacitação continuada aos profissionais dos estabelecimentos penais, com base nos direitos humanos e nos princípios de igualdade e não-discriminação, inclusive no que se refere à orientação sexual e à identidade de gênero.
Nesse diapasão a Defensoria Pública do Estado da Bahia possui o enunciado institucional n. 04, aprovado na reunião temática de maio de 2014, o qual dispõe que “A segregação de custodiados(as) em alas LGBT deverá ser adotada exclusivamente por opção voluntária e formal do indivíduo, e será considerada medida transitória a ser aplicada cumulativamente com políticas de conscientização ou programas para a solução permanente ou diminuição da violência nos presídios.”
Reduzir a violência e manter o foco na erradicação da discriminação e intolerância contra a população privada de liberdade LGBTT deve ser uma missão de todas as instituições e da sociedade civil organizada. Devemos estar atentos para que a privação de liberdade não se una à discriminação e à intolerância, promovendo uma revitimização da população LGBTT privada de liberdade.