‘Nós, trabalhadores do audiovisual, precisamos de recursos para contarmos nossas histórias e expressarmos nossas ideias’, diz cineasta Jocimar Dias Jr, diretor de Vollúpya
Cineasta e pesquisador queer brasileiro, Jocimar vive atualmente no Rio de Janeiro (RJ) e trabalha nas áreas de direção, assistência de direção e pesquisa para produções audiovisuais. Doutor em Estudos de Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF), escreveu e dirigiu o curta-metragem musical Ensaio Sobre Minha Mãe (2014) e o curta-metragem documentário/ficção científica Vollúpya (2024) co-dirigido com Éri Sarmet. Dias Jr. Também está planejando seu primeiro longa-metragem, um documentário ensaístico derivado de sua dissertação sobre Watson Macedo, um cineasta de destaque nas chanchadas de carnaval brasileiras e um homossexual não assumido. Dias Jr. também é membro do coletivo Ritornelo Audiovisual e nesse bate papo com o Dois Terços, falou um pouco do seu trabalho e, claro, sobre o sucesso de Vollúpia. Confira!
DOIS TERÇOS: Vollúpya é um filme de ficção científica, mas que também nos transporta para a Boate Vollúpya, referência no cenário LGBTQIAPN+ em Niterói nos anos 1990. Como foi para vocês unirem esses dois universos: o real e o fictício? E o resgate de imagens da boate, foi um trabalho difícil?
JOCIMAR DIAS JR: A ideia para nosso filme Vollúpya nasceu durante a pesquisa de imagens de arquivo que eu fiz para o curta anterior de Éri Sarmet, “Uma Paciência Selvagem Me Trouxe Até Aqui” (2021). Estávamos à procura de imagens de pessoas LGBTQIAPN+ nos anos 1970 e 1980, e nos deparamos com as imagens da Vollúpya, que eram dos anos 1990. Essas imagens não cabiam no “Paciência”, mas eram tão incríveis que pediam um filme só para elas. Nessa mesma época, o 2º Edital de Fomento ao Audiovisual de Niterói estava aberto, então preparamos um projeto, inscrevemos e fomos contemplados. Nós desconhecíamos completamente a existência da Vollúpya até aquele momento, e ficamos muito felizes de saber que existiu toda uma cena LGBTQIAPN+ pulsante em Niterói no passado.
DT: Daí veio a ideia do filme?
JDJ: Sim, tivemos a ideia de criar essa narrativa de ficção científica, em que um viajante intergalático estivesse à procura de vestígios de seu passado que havia sido apagado em um futuro pós-apocalíptico, e acabasse descobrindo as imagens da Vollúpya, tal qual nós também descobrimos. Aproveitando a arquitetura futurística do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, a parte de ficção é a materialização, na tela, de questões que guiam tanto as minhas pesquisas quanto as do Éri, de pensar formas de fazer esse “desapagamento” da história LGBTQIAPN+, criando arquivos queer através do cinema. Graças ao acervo pessoal que Kaio Luiz, um dos donos da boate, guardou com tanto carinho, nós tivemos acesso a mais de 13 horas de imagens VHS da boate, além de fotos, notícias de jornal e flyers das festas, que nos ajudaram a contar parte da história desse espaço tão importante de sociabilidade LGBTQIAPN+ para toda uma geração na cidade de Niterói – pelo menos o que era possível ser contado em 21 minutos de filme.
DT: No elenco estão Lorre Motta e Zélia Duncan. Como se deu a escolha desses dois grandes artistas que tão bem representam o universo LGBTQIAPN+?
JDJ: Tanto o Lorre Motta quanto a Zélia Duncan haviam estrelado o filme anterior do Éri, “Uma Paciência Selvagem Me Trouxe Até Aqui” (2021), então já havia essa relação de colaboração artística e de amizade pré-estabelecida, o que ajudou muito na hora da escalação do elenco. Para além disso, nós queríamos muito que houvesse uma cooperação intergeracional entre os personagens LGBTQIAPN+ do filme – da mesma forma que nós, de uma geração mais recente de pessoas LGBTQIAPN+, estávamos resgatando as imagens de uma outra geração, nós queríamos que o nosso personagem principal fosse vivido pelo Lorre, um jovem e talentoso ator transmasculino, e que tivesse a ajuda remota de uma espécie de mentora intergaláctica – e nesse caso a voz marcante da Zélia, que é um ícone da música e do ativismo lésbico por si só, desempenha esse papel fundamental que guia essa aliança entre gerações.
DT: Como Vollúpya foi recebido pelo público nos festivais por onde já passou?
JDJ: Temos tido uma resposta incrível do público desde que o filme estreou em junho de 2024, no 48º Frameline – Festival Internacional de Cinema LGBTQ+ de San Francisco (California, EUA). Muita gente chega para nós no final das sessões comentando como gostariam de ter frequentado a Vollúpya depois de assistirem às imagens de arquivo. O filme também emocionou os antigos donos, funcionários e frequentadores da boate — hoje, na faixa dos 50-60 anos de idade — que viram o filme e relembraram daquele espaço tão importante em suas juventudes.
DT: Inclusive Vollúpya já é um filme com algumas premiações…
JDJ: Recebemos também alguns prêmios do público, como o de Melhor Curta pelo Voto Popular no 26º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (Minas Gerais) e ficamos entre os 10+ votados pelo Júri Popular no 35º Kinoforum (São Paulo), o que sempre nos deixa muito felizes, sentir que o filme cativou os espectadores. Além disso, também recebemos premiações dos júris especializados, como o Prêmio de Melhor Curta pelo Júri da Crítica na nossa estreia no Brasil, no 31º Festival de Vitória (Espírito Santo); Melhor Montagem no 26º Festival Kinoarte de Cinema (Londrina, Paraná); Prêmio Canal Brasil no 32º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade (São Paulo, Brasil); Melhor Roteiro (Júri Oficial) no 10º DIGO – Festival da Diversidade Sexual e de Gênero de Goiás; Unicórnio de Ouro de Melhor Documentário (Júri Técnico) np 6ª Transforma – Festival Internacional de Cinema da Diversidade de Santa Catarina (Florianópolis, Santa Catarina); Menção Honrosa de Melhor Curta-metragem (Júri Oficial) no 34º Oslo/Fusion International Film Festival (Oslo, Noruega), Menção Honrosa de Melhor Documentário LGBTQIA+ pelo Júri do Prêmio Félix no 26º Festival do Rio; Menção Honrosa (Júri Oficial) – 17º Festival do Cinema Brasileiro de Penedo (Alagoas); e, mais recentemente, fomos listados entre os 10 Melhores Curtas Brasileiros de 2024 no Prêmio ABBRACINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Estamos muito orgulhosos da trajetória que o filme fez até agora.
DT: Você divide a direção do filme com Éri Sarmet, conhecido pelos curtas-metragens Latifúndio e Uma Paciência Selvagem Me Trouxe Até Aqui. Vocês pensam em realizar novos projetos juntos?
JDJ: Neste momento, Éri está completamente empenhado na finalização de sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP), e no desenvolvimento de seu primeiro longa-metragem, enquanto eu estou no processo de pré-produção do meu próximo curta, “Morfeu”, que vou co-dirigir com Luiz Ulian, e no desenvolvimento do longa-metragem “Ágape Fiestas”, uma espécie de continuação do meu curta “Ensaio sobre minha mãe” (2014), agora focado nas minhas lembranças de infância como criança viada. Aprendi muito com o Éri nesse processo de produção de Vollúpya e, embora não tenhamos nenhum projeto juntos engatilhado, tenho certeza que voltaremos a colaborar num futuro próximo, seja em projetos em que a gente dirija juntos, ou um colaborando no projeto do outro. Certamente quero colaborar com projetos futuros da Excesso Filmes (empresa do Éri Sarmet em parceria com Clari Ribeiro, que foi montador de Vollúpya) — e vem muita coisa boa por aí, quando eles começarem a sair do papel.
DT: Como você vê hoje, principalmente após as indicações de Ainda Estou Aqui ao Oscar, o cinema nacional?
JDJ: “Ainda Estou Aqui” ter ganhado o Oscar de Melhor Filme Internacional é certamente um marco – eu mesmo comemorei bastante no dia da premiação, principalmente pelo clima que se criou durante o carnaval, foi realmente uma festa, uma catarse coletiva após o desmonte do cinema brasileiro implementado pelo governo anterior. Mas para além dos filmes de grande orçamento e do glamour hollywoodiano, a difícil realidade se mantém para nós, cineastas independentes e trabalhadores do audiovisual que enfrentamos instabilidade financeira, dificuldade de inserção no mercado de trabalho, desvalorização e precarização do trabalho acadêmico em cinema, e falta de perenidade das políticas públicas como os editais de fomento ao audiovisual. Para ficar em só um exemplo, o 2º Edital de Fomento ao Audiovisual de Niterói foi em 2019, e até hoje não houve uma terceira edição. Quantos “Vollúpyas” poderiam ter sido feitos nos últimos anos se essa política tivesse tido continuidade? Nós, trabalhadores do audiovisual, precisamos de recursos para contarmos nossas histórias e expressarmos nossas ideias, mas também precisamos de formas de incentivo mais perenes que nos permitam nos sustentar através do audiovisual, pagar nossos boletos, poder pagar melhor as nossas equipes, termos uma vida digna e menos precarizada. Há um longo caminho a ser percorrido.
DT: O que nós baianos podemos esperar de Vollúpya?
JDJ: Vocês podem esperar uma viagem no tempo cheia de suor, amor e tesão, em que vocês serão teletransportados durante 21 minutos para a pista de dança da icônica boate Vollúpya, a boate que fervia Niterói! Nosso filme faz parte da Mostra Competitiva Nacional de Curtas do Panorama Internacional Coisa de Cinema, e será exibido no domingo, dia 06/04, às 19h, no Cine Glauber Rocha, eu estarei presente para o debate após a sessão. Também teremos reprise no dia seguinte, 07/04 (segunda-feira), às 16h45. Estão todos, todas e todes convidades! Espero vocês lá!




