Entre críticas e elogios, ativistas avaliam a luta contra a aids no Brasil em 2023 e celebram a volta da participação social
À medida em que celebramos a chegada de um novo ano, é natural refletirmos sobre as conquistas e os desafios que ainda temos pela frente. Não é diferente na luta contra a aids. Avanços em termos de conscientização, prevenção e tratamento podem ser celebrados, mas existe ainda uma lacuna persistente no que diz respeito à equidade no acesso aos recursos e tratamentos, de acordo com quem enfrenta a realidade diária da epidemia. Estes desafios, segundo os ativistas, fica para o ano que se inicia, demandando ainda mais uma abordagem renovada e esforços colaborativos para superá-los.
Para compreender quais estratégias foram eficazes, o que avançou, o que retrocedeu ou se manteve estagnado no enfrentamento do HIV no país no último ano, a Agência Aids ouviu representantes do movimento social de luta contra a aids que dedicaram suas energias à causa. De norte a sul, leste e oeste, vozes que conhecem a realidade dos muitos ‘Brasis’ compartilham suas experiências e perspectivas e destacam os principais marcos de 2023.
Confira os depoimentos:
Veriano Terto, ativista e vice-presidente da ABIA, Rio de Janeiro
“Como ponto positivo de 2023, acredito que nós podemos mencionar em primeiro lugar a volta do nome aids ao título do departamento. Departamento de Aids, Tuberculose, enfim, voltar a palavra aids é muito importante para garantir, promover a mobilização em torno das questões da pandemia. Um segundo ponto positivo é a retomada e reconstrução de alguns comitês que estavam desatualizados, como por exemplo, o Comitê Técnico-Assessor para Medicamentos. Parece que está um pouco mais adiantado a questão da volta da Comissão Nacional de Aids, que no meu entender está atrasada, mas pelo menos parece que continua na pauta. No contexto atual tem que ser algo positivo, porque já vemos que alguns estados também estão tentando retomar as comissões estaduais de aids. Um outro ponto importante é o lançamento, em setembro, de um novo PCDT, o Protocolo Clínico de Diretrizes Terapêuticas, que é uma obrigação que o nosso Ministério da Saúde tem, um compromisso por lei a cada dois anos. Estava bastante atrasado entre o último PCDT e esse atual, esperamos que não tenhamos que esperar tanto tempo. E como pontos negativos, a gente vê o que o próprio boletim epidemiológico mostrou, que tem um crescimento dos novos números dos casos de aids, temos a questão de raça, influenciando que as pessoas negras que estão mais suscetíveis tanto a contrair o HIV como a morrer de aids em comparação à população branca. Continuamos com muita dificuldade para a incorporação de inovação ou de novos medicamentos no nosso protocolo por causa do alto preço desses medicamentos. Temos também muita pressão das grandes indústrias farmacêuticas para não baixar o preço dos medicamentos no Brasil. Essa é uma questão que a gente vê com grande preocupação para 2024, que é como atualizar os nossos medicamentos, tanto para prevenção como para tratamento, frente aos altos preços e a pouca mobilização. A gente precisa realmente redobrar os esforços nessa questão. Esse é o meu recado sobre 2023. Acho que é muito importante reforçar a questão do abandono. Temos pessoas morrendo de HIV por terem abandonado o tratamento. Nas nossas listas de redes sociais, um número cada vez maior de notícias sobre pessoas conhecidas, inclusive do próprio movimento, que se suicidam depois de processos depressivos, mostrando que a qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV precisa ser repensada, precisa ser melhor trabalhada, inclusive com as questões de saúde mental. Nos preocupa ver esse número crescente entre as redes sociais de pessoas morrendo por uma série de patologias, por abandono de tratamento e por suicídio, ou relatos de depressão profunda, então é algo que nos preocupa muito para 2024. Precisamos sim falar em eliminar a aids enquanto pandemia, mas também precisamos acabar com a epidemia de depressão, a epidemia de estigmas relacionados a essa depressão e de abandono ao tratamento. Então são desafios aí para 2024 para todo mundo que trabalha com HIV. Esse é o meu recado. Feliz ano novo para todos e seguimos juntos em 2024.”
Sabrina Luz – mulher trans vivendo com HIV, ativista e influenciadora digital
“Tivemos bons momentos em 2023, depois de anos de trevas na questão da saúde brasileira, que engloba também o HIV/aids, tivemos evoluções com relação aos medicamentos no SUS. Os testes também tiveram uma melhora na acessibilidade, como também na questão das pesquisas. Estamos caminhando para que tenhamos uma boa comunicação sobre o HIV, a passos lentos, às vezes, mas estamos chegando lá. 2023 foi um ano que me surpreendeu muito , mas também que me emocionou, pois a credibilidade da ciência e do nosso SUS cresce a cada dia. Viva a ciência! Viva o SUS!”
Salvador Corrêa – ativista, psicólogo e escritor, sanitarista e membro da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids, núcleo Rio de Janeiro
“Um dos maiores acertos desse ano foi o renascimento da valorização da política em resposta ao HIV e à aids com a (re) criação do Departamento de HIV/aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis (DATHI). Também é muito importante a simplificação da terapia antirretroviral, que neste momento está em expansão. A campanha do Dezembro Vermelho em 2023 veio mostrar que é possível resgatar aquilo que funcionou. Ainda necessitamos que essas campanhas e mobilizações alcancem todo país e mobilizem os estados e as prefeituras. Queremos que, a exemplo de outros países, o medicamento injetável esteja logo disponível para tratamento. Ainda temos uma longa trajetória para transformar o estigma e a discriminação. Que o Brasil aposte cada vez mais na arte como um antirretroviral social para vírus ideológicos.”
Márcia Leão, ativista e coordenadora do Fórum ONG/Aids do Rio Grande do Sul
“Acredito que 2023 teve avanços. Posso pontuar o retorno das instâncias de articulação com o movimento social (como CNAIDS, CAMS, COGE e os CTAs) e o CIEDDS, que pode se tornar uma importante estratégia para a eliminação das doenças determinadas socialmente e que estão no guarda-chuva do Comitê e a volta do Brasil para as instâncias internacionais. Penso que com essas iniciativas, para 2024, será importante uma aumento no orçamento do DATHI, propiciando maiores financiamentos para as ações da sociedade civil, com editais mais robustos, contemplando projetos de longa execução. É igualmente importante que seja investido em pesquisa e inovação tecnológica. Também espero que as iniciativas desenvolvidas pelo governo federal tenham eco nos estados e municípios, construindo agendas em que a responsabilidade seja compartilhada pelos diferentes níveis de gestão.”
Anna Luiza, escritora e educadora sexual com foco nas infâncias
“Quando colocamos os pés em 2023 eu esperava, devido à ruptura política a nível federal, mudanças importantes. Mais do que mudanças, eu ansiei ao lado de milhões de Brasil por retomadas e avanços. Em muitos aspectos, foi o que eu acompanhei. Na área dos direitos da criança e do adolescente, a recuperação do Ministério dos Direitos Humanos – que deixa de dividir essa pasta com a mulher e a família -, o fortalecimento do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente a tempo do processo de escolha do Conselho Tutelar, sendo ele unificado em todo o país. Quanto à educação sexual, não posso deixar de mencionar a notícia com a qual fomos brindados em julho, da retomada oficial do Programa Saúde na Escola (PSE), política datada de 2007 que havia sido interrompida e desmontada. Esse é o lado meio cheio do copo. O lado meio vazio me faz lembrar da quantidade assustadora de candidaturas ao Conselho Tutelar que contavam com propostas de combate à “ideologia de gênero” e à “doutrinação sexual” nas escolas, dos mesmos autores de fábulas como a do chamado “kit gay”. Ver brasileiros saindo de suas casas para depositar votos de confiança em membros da comunidade que desejam defender apenas um recorte da infância local e que desconhecem o poder do Estatuto da Criança e do Adolescente foi muito doloroso. Acompanhei de perto municípios cuja gestão teve que ser firme no enfrentamento de falácias dessa natureza. Por fim, chegamos ao Dezembro Vermelho e eu, sentada no sofá da minha casa, assisti ao Fantástico trazer no primeiro domingo do mês novos rostos para quem vive com HIV no Brasil, destituindo a famosa foto do Cazuza cruzando os braços a frente do corpo com a feição apática e o olhar sombrio. Vi, como tantos telespectadores, homens e mulheres de diferentes fenótipos e origens sociais abraçando quem são, sem envergonhar-se de sua identidade ou sorologia. Como Chico Buarque escreveu na letra de Bye, Bye, Brazil, “eu vi um Brasil na TV”. Esse é o Brasil que eu quero ver em 2024, livre das correntes dos estigmas e cheio de si e de sua potência viva e única.
Adriano Lopes, ativista vivendo com HIV e criador de conteúdo digital
“Como eu vivo com HIV há 38 anos, praticamente desde o início da epidemia de aids, consigo ter um olhar um pouco mais amplo de vivência. O que eu vejo em 2023 é que, avançamos, estamos avançando na questão de levar informação, mas precisamos avançar mais ainda. Eu acho que é preciso haver mais campanhas sobre prevenção, informar mais para combater o preconceito e principalmente o que eu vejo é que é muito necessário atingir um público jovem, esse é um público que está muito disperso. Na questão do tratamento, o tratamento evoluiu muito, entretanto há uma falha muito grande na questão do acolhimento, o primeiro acolhimento tem que ser um acolhimento de qualidade e também acredito que o mesmo vale para um acompanhamento no segmento de saúde mental, principalmente para as pessoas que descobriram o diagnóstico recente.”
Renata Souza, representante do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas no Conselho Nacional de Saúde
“Em 2023, tivemos vários saldos positivos no combate ao HIV, incluindo os avanços em pesquisas e tratamentos e os progressos significativos em pesquisas sobre o HIV, resultando em desenvolvimentos de tratamentos mais eficazes, opções de profilaxia pré-exposição (PrEP) melhoradas e estratégias inovadoras para gerenciar a infecção. O aumento do acesso a testes e diagnósticos e as melhorias na acessibilidade aos testes de HIV, facilitando o diagnóstico precoce e a entrada rápida no tratamento, contribuíram para a redução da transmissão. Além disso, a redução nas taxas de transmissão vertical e os esforços bem-sucedidos para reduzir a transmissão do HIV de mãe para filho, com implementação efetiva de intervenções preventivas durante a gravidez, parto e amamentação; a ampliação do acesso a tratamentos e a expansão do acesso global, possibilitando que mais pessoas vivendo com o HIV mantenham uma qualidade de vida satisfatória. Houve aumento do engajamento comunitário e conscientização, diminuindo o estigma associado ao HIV e promovendo uma abordagem mais inclusiva para apoiar as pessoas afetadas pela doença; inovações em educação, prevenção, desenvolvimento e implementação de estratégias inovadoras, incluindo campanhas de conscientização e programas de prevenção adaptados a diferentes comunidades.”
José Cândido – ativista, membro da RNP+ Pernambuco e Gestos de
“Não há dúvidas que conseguimos avançar comparando o desastre que passamos no governo anterior, mas precisamos avançar muito mais, avançar no cuidado, avançar na prevenção e na assistência social interligando a saúde. Precisamos avançar também na implantação de novos medicamentos e no protocolo [clínico]. Precisamos retornar a realização dos exames de CD4 para todos e não somente carga viral.”
Evalcilene dos Santos, ativista pelo Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas, núcleo Amazonas
“O primeiro ponto positivo que nós tivemos em 2023 foi a volta do departamento que tinha sido anulado, esquecido e desmontado; e também o apoio novamente para a sociedade civil, incluindo os espaços de debates, de diálogos com a sociedade que retornaram novamente. Isso é uma conquista do movimento social. Os apoios para os encontros de redes de pessoas vivendo com HIV, de movimentos e apoio também para as ações em alguns estados, apoio para as ações de prevenção, de cuidados, de tratamento, de educação, de prevenção e até de acesso. A implantação da PrEP e também da PrEP injetável é super importante em alguns municípios, infelizmente não temos PrEP em todos, mas em alguns municípios a gente já vê um avanço grande. A eliminação da transmissão vertical em alguns municípios foi algo super importante, porque a gente vê o tema do HIV novamente em destaque, vemos mais uma divulgação em massa, como houve agora no dezembro vermelho. Eu acho que há esperança, o esperançar da sociedade civil voltou e nós iremos continuar esperançando para que haja mais apoio para a sociedade civil, para que haja apoio às casas de apoio e que os municípios possam se responsabilizar também por esse cuidado, pelo tratamento, pelos medicamentos para as infecções oportunistas, para as Infecções Sexualmente Transmissíveis que muitos municípios ainda estão falhando. Nós precisamos avançar mais. A volta da distribuição do gel lubrificante também foi uma coisa que a gente conseguiu em 2023.”
Eduardo Barbosa, ativista, coordenador do Mopaids e vice-presidente do Grupo Pela Vidda São Paulo
“O ano de 2023 ainda foi um ano tímido, depois de anos de retrocesso, principalmente depois dos últimos quatro anos, mas a gente conseguiu retomar algumas coisas aqui no nosso país, principalmente enquanto movimento social, a gente conseguiu retomar o diálogo com o Ministério da Saúde em especial, com a Ministra da Saúde, Nísia Trindade, com a Secretaria de Vigilância e Saúde e com o DATHI, o Departamento de Aids e doenças outras; eu acho que é bastante importante essa volta da comunicação e também a volta dos comitês e comissões. Comissões técnicas acabam colaborando para que a gente possa ter protagonismo em tudo que for acontecer. O DATHI hoje tem cerca de 17 comitês e comissões técnicas e nele a participação social é extremamente relevante. Ainda estamos tímidos com essa pauta, por mais que a gente tenha avançado em redução de números, eliminação da transmissão vertical em alguns municípios, como em São Paulo, a gente ainda tem um grande desafio, que é o desafio de atingir essa população que se encontra em maior vulnerabilidade. Pretos, periféricos, LGBTs, especialmente travestis e transexuais, ainda precisam ser acessados. Nós temos a gana para que em 2024 seja retomado os programas ligados à educação, em especial o programa semelhante ao saúde e prevenção nas escolas, para a gente poder retomar essa pauta também da sexualidade com os estudantes. No contexto da discriminação e preconceito, alguns pequenos avanços dentro da campanha do Ministério da Saúde e ações regionalizadas que acabaram acontecendo para marcar o Dezembro Vermelho, a retomada dessas ações. Outro avanço que a gente teve no ano de 2023 foi a retomada da compra, da aquisição – que ainda não está efetivada a distribuição -, do gel lubrificante. Então junto com os preservativos internos, externos, de novo a gente retoma a distribuição do gel lubrificante, que também é bastante relevante.”
Cledson Fonseca, conselheiro Nacional de Saúde pela RNP+ Brasil, núcleo Pará
“Nós tivemos sim muitos pontos positivos enquanto movimento social. A retomada de alguns espaços de controle social, como CNAIDS, CAMS, a criação do CIEDS, que é o comitê interministerial para a eliminação da tuberculose e outras doenças de determinantes sociais […] tivemos avanço com a descentralização da PrEP e agora ela pode ser prescrita por outros profissionais, que não somente o médico, mas farmacêuticos e enfermeiros. Além disso, o marco de não deixar a PrEP vinculada [somente] a público-alvo prioritários, mas sim para a população em geral, que passe por situações diversas de vulnerabilidade com relação ao HIV. Além do reconhecimento da participação do movimento social em alguns espaços como o Conselho Nacional de Saúde, conselhos estaduais e municipais, e o fortalecimento dessas redes, tendo participação em vários assentos. Fortalecimento da RNP+ Brasil, do MNCP, da Rede Nacional de Travestis e Transexuais Vivendo com HIV/aids e da Rede de Jovens Vivendo e Convivendo com HIV/aids.”