‘Ser gay e ficar no armário fazia mal ao meu marido e ao meu casamento’, diz cantor Gil Monteiro
Com uma carreira consolidada dentro da música católica e um grande público que o seguia nas redes sociais e ia aos seus shows, em junho de 2022 o cantor Gil Monteiro fez uma live e revelou que era gay. A partir daí sua vida enquanto artista muda radicalmente: ataques de hatters, shows cancelados e afastamento de alguns “amigos”. Por outro lado, o artista recebe apoio de onde, segundo ele, nem esperava, além de ver aumentar consideravelmente o número de pessoas que passaram a ver seus clipes e ouvir suas músicas nas plataformas digitais, como Deezer e Spotfy. Em entrevista exclusiva ao Dois Terços ele conta como sua vida se transformou e fala da importância de pessoas públicas saírem do armário, pois é um ato político que ajuda a outras pessoas que vivem oprimidas.
DOIS TERÇOS: Gil, em 2022 você foi boicotado por membros na Igreja Católica após, em uma live, se assumir gay. Você, que já vem de uma carreira Gospel consolidada, foi criado em uma família católica, esperava essa reação justamente de uma instituição que deveria ter te acolhido?
GIL MONTEIRO: Sim, eu já esperava esse boicote, porque ele já vinha acontecendo: alguns cancelamentos, alguns “desconvites”, enfim, algumas limitações para certos eventos, ouvia algumas expressões simplesmente pela suspeita de que eu era gay, das suspeitas do meu casamento porque as pessoas mais próximas já sabiam ai uma contava para um, que contava para outra e a história ia se espalhando. Enfim, baseado em suspeitas eu já vinha recebendo esses limitações, então imagina quando resolvi tornar isso público?
DT: Condição comum para quem vivia e vive no meio cristão?
GM: Sim, é muito comum. Então, se existe uma suspeita o boicote acontece, mas ainda é tolerável, o problema é tornar público. E é importante fazermos uma separação entre o que é igreja e o que são pessoas. A igreja tem seu discurso institucional, por exemplo, do Papa Francisco ou de outras pessoas relevantes falando do acolhimento. Então esse acolhimento da pessoa LGBTQIAPN+ existe, mas quando você parte para um lugar de liderança ou evidência como é no caso da música, já se configura outro caso, outra relação.
DT: Naquele momento, o que mais te magoou ou deixou triste?
GM: Tem a ver com as pessoas que eu considerava minhas amigas. Foram poucas, mas pessoas que já sabiam dos seus propósitos, conheciam meu marido, já tinham visitado minha casa, ou seja, pessoas que tinham história na minha vida e de repente se afastaram, sumiram. Posso dizer que foi uma peneira muito grande nas relações que eu tinha. Mas a própria Bíblia já diz que a tristeza dura uma noite e a alegria vem pela manhã.
DT: Imagino então que outras pessoas se aproximaram de vocês …
GM: Sim, o oposto à rejeição foi muito mais forte. Recebi apoio que eu nem imaginava que fosse receber, me tornei amigo e mais próximo de pessoas que eu nem sonhava. Então essa peneira sempre é boa, só fica o que é relevante.
DT: E o apoio da família?
GM: Os vários armários que nós temos, vamos saindo ao longo da vida. Nesse sentido, resumo assim: o apoio da minha mãe e meu irmão, que eu já havia contado, inclusive da minha intenção de tornar o fato público, de fazer um reposicionamento de carreira. O Gilberto pessoa física já estava resolvido com sua família e encontrou muito apoio. Minha mãe até ia na redes sociais para dar respostas a hatters, e eu sempre dizia: “mãe, não arruma pano prá manga com esse povo doido aí não, porque eles perseguem mesmo”. Depois, o restante da minha família ficou sabendo e confesso que nunca recebi nenhuma manifestação negativa. Depois de algum tempo ir com meu marido participar, por exemplo, de churrasco com meus primos foi algo maravilhoso para mim.
DT: Hoje, como está sua vida dentro desse universo católico e da música religiosa?
GM: Vou separar esse universo em dois: a primeira parte, os eventos. Eles foram zerados, não recebi mais nenhum convite e eu tinha uma agenda considerável, com bastante oportunidades de eventos, de repente zerou. Mas vem a outra parte, que envolve vídeos, os streamings … isso não teve queda, muito pelo contrário, eu ganhei mais ouvintes mensais nas plataformas digitais.
DT: Inclusive músicas que você já havia lançado anteriormente?
GM: Isso é muito interessante, falando com meu olhar bem cristão, acredito que com relação a música que eu já havia feito e Deus já sabia que eu era gay, não existe diferença entre passado e presente, as minhas músicas continuam tocando os corações das pessoas e fazendo bem para quem as ouve. Algo interessante e positivo que aconteceu é que pessoas no meio LGBTQIAPN+ que já eram cristãos e de repente souberam que tinha um cara que fazia aquelas músicas, se identificaram e passaram a ouvi-las. Isso foi maravilhoso.
DT: Você fez essa revelação em uma live. O que te levou, naquele momento, a soltar o seu grito e dizer: sou gay, sou feliz e isso não me impede de fazer nada que eu faço.
GM: Foi um propósito de vida. Ser gay dentro do armário e viver nessa condição, me sufocava, me fazia mal, fazia mal ao meu marido e ao meu casamento. Ai quando a comunidade da qual eu participava já por vários anos colocou um limite para mim simplesmente por eu ser gay, foi a gota d´água para o que já passávamos dentro de casa, dentro do coração. Ai parei, fechei minha agenda porque precisava pensar no que iria fazer e decidi contar. Fiz a coisa certa.
DT: Enquanto artista, foi um momento de inspirações também?
GM: Com certeza. Foi dessa dor, desse momento que surgiram as canções do meu mais recente EP. Foi ali que pensei: a mudança ocorre sempre de dentro para fora, então preciso me reposicionar, dar um reposicionamento pro meu dom, para o que eu faço, para a minha vida.
DT: Claro, os hatters devem ter te atacado, mas por outro lado, recebeu muito apoio também?
GM: Eu recebi muito apoio. Na balança, entre hatter e apoio, o apoio foi muito mais relevante. Fazendo uma comparação, o barulho de uma árvore caindo ou de uma serra elétrica se destaca mais, ainda que seja em quantidade menor. Ninguém ouve uma floresta crescendo ou o fermento na massa, são coisas boas que acontecem e coisas boas, por vezes, tem menos destaque.
DT: Algum depoimento que você lembre te deixou emocionado?
GM: Sim, o depoimento de uma mãe de uma cidade pequena, família conservadora, católica. Ela recebeu a notícia que o filho era gay na mesma época da minha live. Daí ela começa a me acompanhar e pegou esse “problema” dela e deu propósito. Juntamente com o marido criaram um grupo de pais para apoiar LGBTS, isso em uma cidade pequena, como já citei, o grupo cresceu e hoje transcende a religião. Me emociono em saber o quanto isso ajudou esses pais, esses filhos e saber que de alguma maneira a minha música Cor do Amor foi que despertou aquela mãe quando a ouviu e foi procurar conhecer minha história. É um depoimento que sempre levo no coração e nosso contato permanece até hoje, ela sempre conta os avanços do grupo.
DT: Chegou a ter shows cancelados após a live?
GM: Sim, tive cancelamento de eventos já agendados. O interessante foi um deles a justificativa que arranjaram: “precisamos cancelar, temos um problema de logística”. Claro que eu entendi, não teriam a coragem de dizer: estamos cancelado o evento com sua participação porque você é gay. Sei que eles achavam que seria perigoso associar a imagem de um evento comigo, seria “negativo”. Os cancelamentos aconteceram, mas ninguém nunca teve a coragem de chegar para mim e falar o motivo, a verdade.
DT: Dentro da igreja católica, por parte de padres, bispos etc. Você chegou a receber apoio?
GM: Recebi críticas, claro, mas recebi muito mais apoio, principalmente de padres. Acho que nunca recebi tanto contato de padres pelas redes sociais. Olha, igual um creme dental que sai do tubo e ninguém mais consegue colocá-lo no tubo novamente. A questão dos LGBTS na igreja é assim, a gente não tem como voltar mais atrás.
DT: Tem o discurso do Papa Francisco…
GM: Sim, de uma igreja de portas abertas, que acolhe e recebe a todos é um desafio para os padres. Eu recebi muitas perguntas de padres do tipo “Gil, o que faço com minha paróquia?”. Nunca vou esquecer de um grupo de padres que se reúne para discutir temas sociais, enfim, temas de coisas que acontecem dentro da igreja. É um grupo de estudos de padres que fazem mestrado, doutorado e tudo mais, eles me chamaram para uma roda de conversa e eu me senti no programa Roda Viva, da TV Cultura. Era em torno de 14 padres e todos ali me olhando, perguntando por quase duas horas. Mas há uma coisa em comum entre todos esses padres é quando eles dizem: “nós precisamos de pessoas leigas, ou seja, de quem não é padre, falando essas coisas, pois, oficialmente, a gente não pode ir além do que o papa já fala”.
DT: Pode ser um “risco” um padre falar algo que está além do que o papa diz…
GM: Se eles falam algo a mais ou tem um gesto de acolhimento a mais, é um risco. Um exemplo disso e que nós conhecemos é o Padre Júlio Lancelote. Uma palavra ou um gesto a mais pode gerar um silenciamento para eles. Não podemos esquecer que, no fundo, tudo gera poder, né? Ouvi muito “você fala o que gostaríamos de dizer”, “você faz o que a gente gostaria de achar um meio de fazer”.
DT: O quanto você considera importante declarações públicas como a sua?
GM: Declarações de pessoas públicas criam referências para as pessoas no momento em que elas precisam. Um cantor que tem músicas relevantes dentro da igreja católica e se assume gay, sem dúvida nenhuma, gera uma referência para alguém que está lá na sua paróquia, seja na cidade grande ou em uma cidade muito pequena com seus conflitos, não só cristãos, pois isso vai além da igreja, mas também na sociedade que ainda não aceita, ainda não tolera , enfim, tem que ter uma lei para dizer que não podemos ser desrespeitados.
DT: Isso é grave…
GM: Sim, toda vez que há necessidade de uma lei para regulamentar algo que é normal, tem um problema ali. Então quando essa pessoa, esse gay ou essa lésbica vê alguém assim, pensa: se ele pode, eu posso, se ele conseguiu eu consigo. Isso gera saúde mental, saúde física e saúde espiritual para essa pessoa e para essa família. O benefício é para a sociedade. Quanto mais referência nós tivermos, mais bem estar as pessoas terão, por isso a importância a respeito do que é bom, a respeito do que é certo, da natureza e do amor.
DT – Gil, fazendo uma referência a sua música: qual a cor do amor?
GM: Todas as cores. O amor não tem uma cor única e não pertence somente aos heterossexuais. O amor pertence a toda orientação sexual e a qualquer gênero, a qualquer dissidência de gênero. Por isso a bandeira LGBTQIAPN+ tem todas aquelas cores, lembrando o arco íris. O arco-íris é um símbolo que vem do antigo testamento. Foi uma aliança de Deus com a humanidade. Depois que ela foi renovada Deus colocou no céu aquele sinal, dizendo que “meu pacto de amor é com todos, com todas e com todes. O amor tem todas as cores”.