Relato de uma pessoa vivendo com HIV/Aids depois da terceira infecção por covid-19
Na primeira semana de janeiro completei 31 anos vivendo com HIV/aids. Não lembro exatamente o dia que se manifestaram os sintomas da infecção aguda pelo HIV, só sei que foi na primeira semana de janeiro de 1990 e eu tinha 17 anos. Já são 31 anos vivendo com o HIV no meu corpo e lutando contra o estigma e a discriminação numa sociedade doente! Morrendo e revivendo diariamente na luta pelo direito de existir!
Estou viva apesar de ter tido uma primeira infecção pelo Sars-Cov-2 com sintomas leves em abril de 2020; de ter covid-19 grave em outubro de 2020 e outra covid-19 grave, na qual precisei de oxigênio e internação em janeiro de 2021.
Não participei de confraternização de Natal e nem de Ano Novo!
Desde o início da pandemia, minhas saídas de casa foram para supermercado, tomar vacina contra gripe, distribuir cestas básicas e kits de higiene e limpeza às pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA), retirar meus medicamentos para o tratamento do HIV e consulta médica, sempre usando máscara e álcool em gel. Utilizo transporte coletivo, invariavelmente lotado, realidade que nos expõe mais ainda porque não existe distanciamento social nestes espaços!
Fui ao hospital da Fundação de Medicina Tropical (FMT) na tarde do dia 8 de janeiro com dores no corpo, dor de cabeça e nos olhos. Paladar alterado e muito cansaço. Fizeram raio-x e havia infiltração de base no pulmão direito. Fui medicada com dipirona, hidrocortisona, tenoxicam e 1 litro de soro, todos injetáveis. Recebi receita de acebrofilina xarope e salbutamol spray. Tenho asma, mas fazia mais de 15 anos que não precisava de bombinhas. Também fui orientada a ir a uma unidade básica de saúde (UBS) para fazer o teste rápido de covid-19. Questionei o porquê de não fazerem o teste lá mesmo, mas insistiram que o protocolo de testes seria numa UBS. Então, pedi o encaminhamento para o teste e a médica me disse que não era necessário. Saí do Pronto-Socorro (PS) e fui direto à UBS mais próxima dali. Lá, me disseram que só faziam teste de covid-19 com pedido médico. Enfim, não consegui nem o teste e nem o xarope receitado no pronto-socorro. Essa burocracia em plena pandemia de covid-19 também nos mata!
Na noite do dia 9 voltei ao hospital da FMT. Estava com 39 de febre e sentindo muitas fisgadas também no pulmão esquerdo, além de muito cansaço e falta de ar. Minha saturação estava variando entre 80 e 93 (levei meu próprio oxímetro). Fiz tomografia que mostrou 25% do meu pulmão esquerdo comprometido. Tive que ir durante 7 noites ao hospital para receber um antibiótico intravenoso (sugestão da médica com a qual concordei). Meu diagnóstico foi de covid-19 grave! Há quase 3 meses eu tive covid-19 grave também com infiltração pulmonar.
Apesar de ter ido toda noite receber as medicações, me sentia péssima. Desde o dia 12 sentia fisgadas no pulmão direito que relatei, mas não levaram em consideração. No dia 13, depois de muito eu insistir, fizeram novo raio-x e constataram comprometimento no pulmão direito também. Por isso me receitaram mais um antibiótico: a claritromicina.
Estava com ambos pulmões comprometidos, mas não dispensaram esta medicação apesar de saberem que sem remédio eu poderia piorar!
Na mesma noite, minha tia comprou a claritromicina e comecei a tomar. E revivi as mesmas dificuldades que passei durante meus inúmeros adoecimentos e internações causadas pela AIDS: descaso no pronto socorro; barreiras para receber na farmácia pública as medicações prescritas e a falta de disponibilidade de muitas das medicações, tendo que comprá-las.
Digo e afirmo: da mesma forma que não morri de AIDS porque sempre tive suporte familiar, também não morri de covid-19 porque continuo tendo este suporte!
O DESCASO MATA DE AIDS E DE COVID-19!
DENÚNCIA: Não me disponibilizaram a claritromicina na farmácia do pronto-atendimento (PA) porque disseram que essa farmácia é somente para uso no local. É um absurdo a farmácia do PA negar medicação e querer que a gente volte no horário comercial para pegar na farmácia do ambulatório. E assim as PVHA de Manaus seguem nesta realidade de serem jogadas de um lado para outro dentro da própria Fundação de Medicina Tropical do Amazonas enquanto suas vidas e saúde parecem não ter valor para a gestão.
Manaus ficou sem oxigênio dia 14 nos pronto-atendimentos e mais de 30 pessoas com covid-19 morreram asfixiadas. Percebe que o GENOCÍDIO É AQUI?! Este foi o último dia em que também tive oxigênio em casa, e segui para o PA da FMT para dar continuidade à medicação intravenosa. Este vai e vem diário me desgastava demais e eu me sentia cada vez pior.
No dia 15 minha família não conseguiu encher o cilindro de oxigênio e eu estava com cansaço extremo. Era o sétimo dia indo toda noite ao pronto-atendimento (PA) da FMT para receber ceftriaxona injetável, terceiro de clexane subcutâneo na barriga e a dipirona injetável. O médico queria novamente me manter nas idas noturnas ao PA para continuar fazendo o clexane (anticoagulante). Expliquei insistentemente que eu não tinha mais nenhuma condição física e nem financeira para continuar indo ali e que precisava ser internada, já que o medicamento não poderia ser feito em casa e eu também não conseguia mais o oxigênio diário. Foi uma longa e tensa discussão até que o médico resolveu me internar na enfermaria do PA, leito 8.
Minha experiência com a pandemia de aids me ensinou a conhecer os meus direitos e a lutar por eles!
Me senti maltratada e abandonada naquela enfermaria de quatro leitos (onde somente eu ocupava um deles), sem soro ou qualquer outra medicação que amenizasse minhas dores. No dia seguinte tive uma crise de tosse, falta de ar e demorou muito até me socorrerem. Meu paladar já estava completamente alterado desde o dia 9 e tudo tinha gosto de podre. Eu não conseguia comer e nem beber água porque me davam ânsia de vômito.
Um pouco depois de meia-noite do dia 17 me transferiram para a enfermaria de covid-19 da FMT, leito 174, onde a estrutura física era melhor do que a enfermaria. Além disso, passaram a monitorar com frequência minha saturação, pressão e temperatura (coisa que no outro leito não faziam). Às 15h a médica prescreveu remédio adequado para minha dor de cabeça/olhos, soro e medicamento específico para dores musculares. Às 17h puseram o soro e me deram os analgésicos. Também fizeram a primeira coleta de sangue para exames desde que me internaram. Foi quando fiquei bastante aliviada das dores enlouquecedoras.
No dia 18 me deram alta porque eu não estava precisando de oxigênio e nem de medicação intravenosa, e devido a escassez de leitos, continuei o tratamento em casa.
Foi uma longa peregrinação diária no PS da FMT desde o dia 8 de janeiro e, paralelamente, uma incansável corrida da minha família para conseguir encher diariamente um cilindro de oxigênio (emprestado), de 5L para que eu pudesse suportar toda essa logística. Passava o dia deitada, cansada e me limitando a idas indispensáveis ao banheiro. Tomar um simples banho era uma tarefa hercúlea. Seguia à risca as prescrições dadas na alta hospitalar!
Meu paladar continuou totalmente alterado (tudo tinha sabor de podre!) por muito tempo, então, comer e beber foi uma tortura necessária para que eu me recuperasse!
Minha respiração trazia o cansaço de quem carrega uma pedra em cada pulmão, a dor indizível de uma nação dizimada pelo negacionismo, e engolia água e alimentos com o paladar apodrecido pela ignorância mórbida de um presidente psicopata!
Fico me perguntando sobre os empresários aqui de Manaus que fizeram manifestação contra o lockdown antes do Natal: será que toda essa gente morta já não é suficiente para que se conscientizem que nenhum lucro é maior que a vida das pessoas?!
Só tenho a agradecer o suporte imprescindível de médicas amadas, e todas as pessoas que me apoiaram e me apoiam (de perto e de longe) com suas energias positivas, companheiras/os do Movimento de Luta Contra a Aids que articularam em meu favor para um melhor atendimento e também com apoio financeiro. E, fundamentalmente, agradeço à minha família que sempre esteve comigo em todas as minhas lutas pela VHIDA. Minhas filhas que cuidaram de mim em casa e minha tia Rosângela Campos e sua diligente busca diária por oxigênio junto com meu primo Cristiano, para que eu conseguisse chegar viva até ser internada e depois voltar para casa e me recuperar.
Hoje ainda sofro com as sequelas da covid-19: as dores de cabeça fortíssimas ainda são constantes. Continuo ficando muito cansada com um simples banho. Das dores nas articulações, meu joelho direito ainda me incomoda bastante. Me sinto muito limitada. Fiquei mentalmente desgastada!
Apesar de estar com carga viral indetectável há 15 anos e CD4 acima de mil, a covid-19 abalou muito a minha imunidade. Tive episódio de herpes zoster e agora herpes labial. Então fico pensando, como estão as PVHA que já não estavam com a imunidade equilibrada e o HIV tão bem controlado como eu e também tiveram covid-19?
A VACINA é a única solução para não ter covid-19 grave novamente! Mas o Ministério da Saúde colocou o critério de CD4 igual ou menor que 350 para as PVHA terem acesso à vacina no grupo de comorbidades. Eu não estou neste patamar e por isso, neste grupo, não terei direito à vacina. Tenho pavor de ser infectada novamente pelo novo coronavírus porque creio que meu organismo não resistirá…
QUE TODAS AS PVHA TENHAM ACESSO à VACINA CONTRA A COVID-19 INDEPENDENTE DE CD4!
O holocausto de covid-19 que ocorre em Manaus agora está se alastrando por todo o Brasil ao mesmo tempo!
PAREM DE NOS MATAR!
* Vanessa Campos, 48 anos, é Secretária de Informação e Comunicação da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+Brasil), Representante Estadual da RNP+ no Amazonas e idealizadora da fanpage Soroposidhiva.
Da Agencia Aids