Opinião

Homens cisgêneros têm privilégios estruturais em uma sociedade machista e patriarcal

Genilson Coutinho,
29/01/2020 | 12h01

Diego Nascimento

Homens cisgêneros têm privilégios estruturais em uma sociedade machista e patriarcal. Essa afirmação é mais ou menos um consenso nos ativismos feministas, resguardadas as devidas interseccionalidades, sobretudo as de raça, a serem feitas. Ser um homem cis concede acessos e possibilidades que são impensáveis às mulheres. O machismo e o patriarcado, enquanto opressões estruturais, operam na manutenção das relações de poder entre homens cis e mulheres (cis ou trans), e a isso damos o nome de privilégios estruturais. Contudo, esse consneso se dissolve quando pensamos outra categoria de masculinidade: a dos homens trans.

Embora com as mesmas identidades, homens cis e trans têm vivências de gênero claramente distintas. Enquanto uma dessas vivências é validada enquanto masculina por toda a vida, a outra tende a passar uma parte considerável da vida sendo negada completamente, e a outra parte em uma validação extremamente precária.

Por essa análise, somada aos altos índices de violência física, moral, simbólica e sexual perpetrada contra homens trans, é comum que esses sujeitos, ao serem apontados como detentores dos privilégios da masculinidade, neguem estar em tal lugar. E não só neguem como, parte considerável das vezes, sintam-se ofendidos com tal colocação. Por outro lado, não raro algumas mulheres cisgêneras dentro dos feminismos equiparam homens trans e cis como se não houvesse qualquer diferença entre eles, como se ambos gozassem dos mesmos privilégios e tivessem as mesmas ferramentas de manutenção de opressão. Mas, afinal de contas, quem está certo?

Na minha análise, nenhum dos dois. Nenhum dos dois porque ambos defendem extremos que não são aplicáveis à realidade material. É fato que homens trans não dispõem das mesmas ferramentas de opressão que o homem cisgênero. O sistema de gênero é todo engendrado e construído para controlar, cercear e, não raro, exterminar as pessoas que desviam das normas e papeis impostos, e isso inclui os homens trans.

Ao mesmo tempo, é ingênuo, pra não dizer desonesto, negar os efeitos da passabilidade na vida de homens trans, quando esta é alcançada. Quando esses homens atingem um grau de alteração física tal que passam a ser lidos socialmente enquanto os homens que são, e automaticamente enquanto homens cis, uma vez que a maior parte da nossa população desconhece ou ignora outra possibilidade de se vivenciar a masculinidade, é dado a esses sujeitos o que eu gosto de chamar de “micro-privilégios”.

Uma leitura masculina constante (geralmente proporcionada pelo combo anos de hormonização + barba + mastectomia realizada) somada a documentos retificados permite a um homem trans, na maior parte dos espaços que transita, ter a opção de não expor sua transgeneridade. E, quando essa transgeneridade não é exposta, goza-se, sim, de alguns dos privilégios direcionados aos homens cisgêneros.

Uma breve anedota, a título de exemplificação: 4 anos atrás, quando do meu ingresso no ensino médio, tive uma discussão na primeira semana de aula com dois garotos cisgêneros acerca do direito ao aborto. Expus, com muita clareza argumentativa, tudo que o feminismo havia me ensinado até ali e que explicitava como o aborto é um direito e uma necessidade de saúde pública. Após algumas horas de conversa eu consegui convencer dois garotos, um deles evangélico, de que aborto é um direito. Isso só aconteceu porque eu estava sendo lido por aqueles garotos como um igual, como um homem, com o qual eles podiam se dar ao trabalho de discutir. A leitura cisgênera masculina me possibilitou aquele debate. Fossem 2 anos antes, com aqueles mesmos garotos, mas com uma leitura feminina, eu tenho absoluta certeza que todos os meus argumentos seriam invalidados sob a alcunha da vadia feminazi abortista.

Mais uma anedota: certo dia, voltando de um treino às 23h e tanta da noite, numa rua deserta, uma mina saiu de uma rua transversal a que eu estava e me viu. No mesmo momento, a mina reduziu o passo e começou a muito claramente se perguntar se seguia o seu caminho, se voltava ou se ficava ali parada esperando eu sumir de vista. A mina pegou algo na bolsa, que eu apostaria hoje tranquilamente serem chaves, canivetes ou qualquer objeto perfurocortante, atravessou a rua para o outro lado, e não tirou o olho de mim por um segundo até que eu entrei em uma rua distinta a que ela estava.

Esses dois episódios ilustram momentos em que eu, um homem trans, gozei dos micro privilégios que a passabilidade masculina proporciona. Em que pese, no segundo relato, o fato de eu ser um homem negro e haver um componente racista no como eu sou mais facilmente lido como uma ameaça, o fato é que minhas amigas, algumas delas mulheres pretas profundamente antirracistas, se comportam de formas parecidas a daquela mina na presença de qualquer homem naquele contexto. Para mulheres, numa rua deserta às 23h da noite, homens desconhecidos são sempre uma ameaça. Não importa quem ou como esse homem seja.

Eu, homem trans, ando hoje com muito mais tranquilidade em uma rua deserta de noite. Aliás, uma retificação: não, eu não ando tranquilo, mas meus medos mudaram. Hoje, o meu risco está na minha cor. O meu risco está associado a policia genocida que opera pra exterminar homens como eu. Contudo, os medos comuns às mulheres nessas situações, devo confessar, estão bem distantes na minha cabeça. A interseccionalidade é primordial nessa análise para que se compreenda: não há privilégio em ser preto. Há privilégio em ser homem.

Além dessas situações, o poder da leitura masculina vai se evidenciar em qualquer relação interpessoal estabelecida, seja com outros homens ou com mulheres. Na ausência do conhecimento sobre minha transgeneridade, os outros homens me veem como um aliado. Nessas condições, qualquer contato com uma mulher pode virar um exercício de poder.

A estrutura patriarcal não opera, e jamais operará, em favor dos homens trans. Todos os micro privilégios que nos são concedidos se esvaem no momento em que a informação sobre nossa transgeneridade vem a tona. Mas isso não anula o fato de que a passabilidade nos oferece em diversos momentos a possibilidade de desfrutar deles.

É preciso falar mais sobre isso, tanto para que as mulheres feministas comecem a fazer suas análises considerando recortes e entendendo que não, nem todo homem goza de autorização social para estuprar, por exemplo, pois homens trans não foram e não são educados sob a premissa de que os corpos das mulheres estão a sua disposição; quanto para que os homens trans entendam as concessões que a sociedade faz meramente por conta da figura masculina e aprendam a se apropriar delas não como meros reprodutores dos padrões tóxicos e doentios da masculinidade hegemônica, mas como propositores de um novo projeto de masculinidade.

Diego Nascimento – feminista interseccional, militante LGBT, Secretário Geral da ATRAÇÃO (associação de travestis e transexuais em ação) e integrante do Coletivo De Transs pra Frente