Sobre Bianca Dellafancy e banalidade do Super Artista Negro por Filipe Cerqueira
Escrever sobre Bianca Dellafancy é antes de tudo construir um registro sobre uma artista de extrema competência dentro do mundo lgbt. Ao mesmo tempo, Bianca é um clichê da figura negra que ascende artisticamente. Explico, o artista preto (a), que desponta no cenário mainstream, muitas vezes carrega em si a competência de inúmeros artistas brancos. Para ele estar no top 10, entre os 5 melhores, ou em primeiro lugar, é porque ele é quase uma máquina de entreter. Bianca não é “somente” uma drag queen, ela é dj, design, modelo, performer, You Tuber, apresentadora de um podcast, maquiadora… Se para uma drag branca traçar uma carreira sólida é algo difícil, para uma drag negra as exigências em circuitos lgbt, falso desconstruído, é ainda maior. Quando ouço sobre Bianca, o substantivo “negra”, vira adjetivo agregado ao trabalho em excelência. Ela é negra e é tudo isso! É negra, simpática, negra, bonita, negra, deusa, negra, faz de um tudo… O mundo lgbt está acostumado com uma drag branca apenas drag. A negra, precisa ir além… E Bianca vai!
Conheci Bianca (personagem criado pelo multi artista Felipe Souza) quando já estava de saco cheio desse mundo branco sendo construído para o lado das queens. Tem drag de tudo quanto é tipo atualmente. A política, a conselheira, a caricata, a maquiadora poderosa, a professora, a gamer, a comentadora de Ru PaulDrag Race, as cantoras, entrevistadoras. Nos últimos anos a figura da drag se expandiu para além dos palcos de boates gays. E neste novo cenário, existem pontos pretos em um panorama comandado por artistas brancos drag queens. Num rompante, digitei Gloria Groove no celular e eis que surge um vídeo do TÁ BOM PRA VC?, canal do YouTube comandado por Bianca. O quadro em questão da vez era o DELAMAKE, onde uma celebridade é maquiada, tornando-se uma drag queen. Neste vídeo, o primeiro do canal, Bianca maquiava Daniel Garcia, transformando em uma queen da família Dellafancy.
Ok, você já viu isso mil vezes na internet, mas há um diferencial quando Bianca protagoniza a cena. A forma como ela conduz o convidado a se divertir e ao mesmo tempo pensar seriamente sobre a sua existência política enquanto artista lgbt, é única. A xurria está presente, mas o quadro toca em pontos complicados e custosos à nossa gente. Bianca também se posiciona, sempre que possível, enquanto homem cis negro gay, ou drag negra, contribuindo para um debate em diversas perspectivas. Através de uma drag negra, a discussão sobre um mundo lgbt diverso surge, e escancarados estão as tribos, guerras internas, diferenças de classe, raça, gênero, corpos, formas como lidar com a sexualidade, distanciamentos e congruências entre nós. Tudo, está no canal. Tudo discutido com muita honestidade. Às vezes, honestidade até demais, já que algumas conversas são regadas a Gin, Catuaba… e ai é daqui pra ali para o convidado se soltar mais do que deve… O resultado é SEMPRE muito bom! Se ri muito, pois ao mesmo tempo, Bianca consegue ser polida em engajamento, mas é engraçada, irônica, sarcástica, provocativa e… desastrada que só! (“quebrou horrores bee…”)… Nessa leva, personalidades como Silvetty Montilla, Danny Bond, Pablo Vittar e Karol Conká já passaram pelas mãos da boneca.
Bianca também viaja pelo Brasil como drag dj nas principais festas da cena lgbt do país e o que se vê é uma total entrega entre fãs e ídolo. Bonito é ver a forma como ela trata seus seguidores e também a forma respeitosa dos seus fãs frente a sua persona. Além de um set poderoso, ela também está semanalmente no podcast Santissima Trindade das Perucas, junto as queens LaMona Divine e Duda Dello Russo. No “programa” as 3 discutem, na presença de um convidado ou não, TUDO relacionado ao mundo lgbt. Informam, ao mesmo tempo que avacalham, dão conselhos poderosos, compartilham experiências de vida fortalecendo a estima de seus ouvintes. Sem deixar a fechação de lado. Bianca mais uma vez, dá um show! O posicionamento dela frente as outras queens é de uma verdade que não vem de um academicismo distante, é a partir de suas vivencias transformadas em voz para empoderar-se e fortalecer o outro. Sua consciência negra e lgbt não se oferece como uma carência, ela é, está lá, firme!
E para você que até agora não viu diferença entre os corres de Bianca e outras queens brancas (elas aparentemente fazem a mesma coisa), acorde! Uma drag branca na cena tem oportunidades completamente diversas das outras raças. Para uma profissional branca, demais atividades são um up na carreira, para as negras a quantidade de trabalho acumulado é a diferença exata para o público notar sua presença como um… alguém! O artista negro precisa ser mais. É bom para o público, mas essa exigência externa e interna é de uma violência sem tamanho. O ponto preto não deve ser somente o ponto preto. Ele precisa reluzir, piscar, chamar atenção. Bianca reluz! Com competência graças a Deus. Que venham mais outros pontos negros. Vamos enegrecer a cena!
Filipe Cerqueira é diretor da SOUDESSA Cia de Teatro, historiador pela UNEB, realizador audiovisual pelo Projeto Cine Arts – UNEB – PROEX e apaixonado por cinema.