Vergonha? Eles falam abertamente sobre HIV para conscientizar e ajudar
No mundo, cerca de 38,4 milhões de pessoas vivem com HIV, de acordo com os últimos dados divulgados pelo Unaids, programa da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre HIV/Aids. Em se tratando do Brasil, os números mais recentes indicam que são 960 mil.
Os primeiros casos da infecção pelo vírus da imunodeficiência humana foram diagnosticados nos Estados Unidos em 1981, e, durante muito tempo, receber o resultado positivo era considerado uma sentença de morte.
Contudo, com a evolução da medicina e o aprendizado adquirido por cientistas e médicos, muito se descobriu sobre essa infecção —considerada crônica— e, hoje, com tratamento adequado, é possível levar uma vida completamente normal.
Pois é exatamente isso o que acontece com a autônoma Jessica Rodrigues Mattar, soropositiva há um ano e meio; o produtor de conteúdo digital Lucian Ambros, soropositivo há 12 anos; e a analista de business intelligence Maya Viecili, soropositiva há quase três anos.
Em conversa com VivaBem, os três, que estão com o vírus indetectável e falam abertamente sobre a sua condição, a fim de ajudar e apoiar outras pessoas que passam pelo mesmo, contam como foi a descoberta e destacam a importância da testagem, do tratamento e da busca por informação de qualidade.
‘Foi um alívio finalmente descobrir o que tinha’
“Testei positivo para HIV em fevereiro de 2020, quando já estava nos últimos estágios da Aids, com diversas infecções oportunistas. Os sintomas começaram a aparecer no ano anterior. Primeiro foram episódios de febre, que surgiam do nada e, também, sumiam do nada, mesmo sem tomar remédio.
Naquela época, fui a vários médicos e fiz diversos exames, mas os resultados sempre vinham normal. Os especialistas diziam que provavelmente era uma gripe. Mais para o fim do ano, a situação foi se agravando. Tive erupções cutâneas e candidíase, inclusive na boca, e perdi bastante peso e cabelo.
Depois, já no início de 2020, tive suores noturnos que se tornaram cada vez mais intensos. Suava de encharcar pijama, lençol, edredom, colchão, mesmo com temperatura de -20⁰C, -25⁰C. Já perto do diagnóstico, fui sentindo cada vez mais dificuldade para me movimentar, falar, respirar…
Um dia, passei mais de 14 horas no hospital fazendo exames. O de raio-X apontou que eu estava com uma grave pneumocistose e isso levantou a lebre para HIV. Fiz o teste e recebi o resultado na manhã seguinte: positivo.
No começo, foi um baque. Não queria acreditar, mas estava tão fraca, tão cansada, que não tive energia para reagir de fato à notícia. E, no fim das contas, foi um alívio descobrir finalmente o que tinha. Hoje, digo que o diagnóstico me salvou. Se não o tivesse recebido, não teria tido a oportunidade de me tratar e teria morrido de Aids.
Em relação ao tratamento, comecei imediatamente, ainda no hospital. Fiquei 28 dias internada e, quando tive alta, segui tomando os remédios em casa. A medicação dizimou a quantidade imensa de vírus que tinha no corpo e, com isso, as infecções oportunistas perderam força. Desde o oitavo mês tenho carga viral indetectável.
Minha aderência ao tratamento sempre foi de 100%, nunca deixei de tomar os remédios, nenhum dia. Esse é o meu maior compromisso. Além disso, a cada 3 meses visito os médicos especialistas nas infecções oportunistas que tive e, a cada 6, a infectologista.
O que também foi importante é que nunca tive vergonha de ser HIV positivo. Tanto que decidi tornar minha sorologia pública e usar minha história e experiência para ajudar outras pessoas a conviverem melhor com o vírus. Precisamos normalizar falar sobre o assunto e acabar de uma vez por todas com o estigma que ainda existe.” (Maya Viecili, 41, analista de business intelligence e moradora de Helsinki, na Finlândia)
‘Desinformação é o que mata, não o vírus’
“Descobri que sou soropositiva em maio de 2021. Uns dois meses antes mais ou menos, tive um sangramento muito intenso. Achei que era menstruação, só que não passava. Pelo contrário, só aumentava. Aos poucos também comecei a sentir fraqueza, apareceram manchas na minha pele e fiquei com as axilas inchadas e doloridas.
Fui ao médico e fiz exames de sangue. Deu que eu estava com anemia e com a taxa de plaquetas muito baixa. Precisei ser internada para receber transfusão de sangue; acabei ficando um mês no hospital.
Aos poucos, o nível das plaquetas subiu e a anemia melhorou. Mas uma das médicas que me atendeu quis investigar o que estava causando aquilo e me pediu exame de HIV e de outras ISTs (infecções sexualmente transmissíveis).
Fiquei com medo de fazer, e comentei isso com ela. mas ela me questionou: ‘Você tem medo de morrer ou de viver? Porque se você tiver alguma doença e não descobrir, não tratar, você pode morrer’.
Aceitei fazer o exame, e deu positivo. Assim que soube, fiquei muito preocupada, achei mesmo que ia morrer. Esse é o primeiro pensamento que vem, é um peso que ficou da década de 1980, quando receber o diagnóstico de HIV era uma sentença de morte.
Mas logo comecei o tratamento —no início, precisei ficar um tempo de cama porque minha imunidade estava bem baixa e havia o risco de eu pegar alguma infecção oportunista. Fui me recuperando bem e em alguns meses já fiquei com a carga viral indetectável. Graças a evolução da medicina, hoje temos muitos remédios e, com eles, podemos ter uma vida normal.
Tão normal que podemos, inclusive, engravidar, como aconteceu comigo quase um ano depois do diagnóstico. Eu já tenho duas filhas e não estava nos meus planos ter mais. Mas aconteceu. Costumo dizer que, quando recebi o diagnóstico do HIV, recebi um positivo de morte. Mas, quando soube da gravidez, recebi um positivo de vida.
Neste mais de um ano e meio que convivo com o vírus, aprendi muita coisa. E como sempre fui uma pessoa de quebrar tabus, resolvi aceitar de cabeça erguida e até expor a minha condição na internet.
Com a minha história, quero que as pessoas entendam que viver com HIV não é mais o fim do mundo. A vida não acabou, existe tratamento, existe solução, existe a possibilidade de gerar outra vida…
Precisamos acabar com o preconceito e a desinformação sobre esse assunto. Porque é isso que mata, e não o vírus. Hoje, as pessoas morrem por medo de conversarem com o médico, por medo de fazerem o exame, por medo de se tratarem… E isso precisa acabar.” (Jessica Rodrigues Mattar, 31, autônoma e moradora de Além Paraíba, MG)
‘Depois do diagnóstico, comecei a me autojulgar’
“Descobri o HIV no dia 15 de fevereiro de 2010. No ano anterior, me relacionei durante alguns meses com uma pessoa e, depois que paramos de nos ver, uma amiga dele veio conversar comigo e me aconselhou a fazer o teste. Fiquei morrendo de medo e só no mês seguinte criei coragem.
Fiz a coleta de sangue e o laboratório, então, me pediu um reteste. Fiz também e, quando liguei para pegar o resultado, me informaram que eu teria de ir pessoalmente ao local. Naquele momento já entendi que tinha sido infectado.
As primeiras semanas depois do diagnóstico foram as mais difíceis. Não conseguia dormir, comer, trabalhar… Também comecei a me autojulgar. Tudo aquilo que sempre escutei sobre HIV, que é coisa de gay, gente promíscua, drogada, prostituta, joguei para mim.
Apesar do medo, e de achar constantemente que iria morrer, só comecei a me tratar quatro anos depois. Naquela época, o protocolo para uso dos medicamentos era diferente. Só pessoas com CD4 (células do sistema imunológico) abaixo de 500 recebiam a prescrição. E a minha taxa era acima disso. Além disso, eu tinha muito medo dos efeitos colaterais e tudo o que falavam sobre a medicação.
Quando iniciei de fato o tratamento, em 2014, tive tuberculose, uma infecção oportunista. Mas de lá para cá tomo os medicamentos corretamente, todos os dias, e nunca tive mais nada. Hoje, minha carga viral é indetectável e levo uma vida absolutamente normal e saudável.
Há mais ou menos cinco anos, resolvi falar abertamente sobre a minha sorologia. Demorei porque tinha receio de ser julgado e sofrer preconceito. Mas a partir do momento em que comecei a entender melhor o HIV, a estudar sobre ele, as coisas mudaram.
Criei, então, uma rede social para pessoas que vivem com o vírus, a Posithividades. Era um espaço de acolhimento e de troca de informações. Cheguei a ter 10 mil usuários em 60 países, mas o projeto faliu. Depois disso, segui produzindo conteúdo sobre o tema, lancei uma linha de produtos e criei um grupo de apoio.
Costumo dizer que, depois do diagnóstico, encontrei o meu propósito de vida, que é ensinar as pessoas sobre HIV, conscientizá-las sobre a importância da testagem e do tratamento e ajudar quem testa positivo a enfrentar a situação.
A minha luta é para que um dia todos possam se expressar sobre a sua sorologia sem ter medo.” (Lucian Ambros, 34, produtor de conteúdo digital e morador de São Paulo, SP)
Manter a consistência para o correto controle da doença
Globalmente, a Unaids aponta que 28,7 milhões de pacientes com HIV têm acesso a tratamento. No Brasil, são 694 mil. Segundo José Valdez Ramalho Madruga, infectologista e coordenador do Comitê de HIV/Aids da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), ele é feito com uma combinação de 2 a 3 medicamentos antirretrovirais e consultas e exames periódicos.
“A terapia padrão hoje são dois fármacos da classe dos inibidores da transcriptase reversa e um inibidor da integrase ou um inibidor da protease”, explica o médico. “O vírus depende justamente dessas enzimas, transcriptase reversa, integrase e protease, para se multiplicar e invadir as células, e os remédios têm a função de inibir estes processos”, acrescenta.
Em relação às consultas regulares com os especialistas e os exames para verificação da carga viral e da imunidade, no início, eles são realizados a cada um ou dois meses após o diagnóstico. Depois, nos primeiros seis meses até um ano, passam para três meses e, quando fica comprovado que o paciente se adaptou aos medicamentos e, o mais importante, que eles estão fazendo efeito, o intervalo sobe para seis meses.
“A meta do tratamento é tornar o HIV indetectável para que ele não seja transmitido e não ataque o sistema imunológico, causando a aids e as infecções oportunistas. Assim, a pessoa pode ter uma vida completamente normal. Só que, para isso, ela precisa tomar os remédios todos os dias, sem falta, e ir ao médico”, aponta Madruga.
“O HIV não tem cura, mas tem um ótimo controle. Ninguém mais morre em decorrência dele, é só seguir a terapia à risca”, finaliza.
Fonte: Viva Bem