Oferecidos gratuitamente desde 2019 pela rede do Sistema Único de Saúde (SUS), os medicamentos que compõem a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) contra o vírus HIV são voltados para públicos com maior risco de contaminação pela doença. Entretanto, quatro anos depois do início de sua distribuição, a informação é o principal problema encontrado para atingir especialmente seus alvos prioritários, que são as mulheres trans, travestis e garotas de programa.
O infectologista Unaí Tupinambás explica que a PrEP é a combinação de dois medicamentos que conseguem “bloquear” a infecção pelo vírus causador da Aids. “Os trabalhos científicos dão conta de que quem usa corretamente o medicamento consegue atingir uma proteção de até 97% contra a infecção pelo HIV. Mas, é claro, é importante que seja usada a chamada ‘estratégia de prevenção combinada’, que conta com outros métodos, como o uso de preservativo, lubrificante e a testagem”, detalha.
A PrEP possui alguns critérios para o uso, que incluem a seleção de pessoas com maior vulnerabilidade à infecção pelo HIV: gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH); pessoas trans e travestis; trabalhadores(as) do sexo; e parcerias sorodiferentes (uma das parcerias vive com HIV). Também há indicação para pessoas que têm relações sexuais frequentes sem uso de camisinha, aqueles que fazem uso repetido de PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao HIV) ou que tenham episódios frequentes de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs); e, ainda, para quem tem relações sexuais com parcereiros com HIV positivo que não esteja em tratamento.
Mobilizador social e membro da Rede de Adolescentes e Jovens que Vivem e Convivem com HIV/AIDS de Minas Gerais, Rafael Sann Ribeiro argumenta que, apesar de se tratar de um medicamento muito importante para se alcançar a extinção da epidemia de Aids em todo o planeta, no Estado os públicos que estão mais expostos ao vírus são os que menos têm acesso à PrEP.
“Hoje, vemos que a maior parte dos usuários são jovens gays cis de classe média-alta, enquanto pouquíssimas transexuais, travestis e garotas de programa estão tendo acesso a esse medicamento gratuito. Na minha avaliação, existe uma carência de investimento na divulgação desse mecanismo de prevenção para essa parcela mais vulnerável da nossa população, que, por sinal, é a que está mais exposta ao vírus causador da Aids”, argumenta.
De acordo com a coordenadora municipal de Saúde Sexual e Atenção às IST, Aids e Hepatites Virais de Belo Horizonte, Christiane Hernandes, atualmente, existem na capital mineira 1.221 usuários ativos da PrEP. Ela explica que, segundo os dados do Ministério da Saúde, entre o início da distribuição da medicação e o dia 30 de junho deste ano, 95,2% dos usuários do remédio eram homens cis.
“Em seguida aparecem as mulheres cis (2,1%), as mulheres trans e travestis (2%), os homens trans (0,4%) e os não binários (0,3%). O dado de escolaridade mostrou que 85% do público possui 12 ou mais anos de estudo, 14%, entre 8 a 11 anos, e 1%, entre 4 e 7 anos”, detalha a profissional.
Ainda conforme Christiane, dentro do recorte de gênero feminino, 24% das usuárias da PrEP relataram trocar sexo por dinheiro, objetos de valor, droga, moradia ou serviços.
“O Programa BH de Mãos Dadas contra a AIDS, que atua por meio de redutores de danos junto às populações vulneráveis, dentre elas as travestis e as(os) garotas(os) de programa, trabalha e sensibiliza cotidianamente esse público quanto à importância das medidas de prevenção às infecções sexualmente transmissíveis no contexto da prevenção combinada. A oferta de PrEP é uma delas”, completa.
De janeiro a agosto de 2022, o programa abordou 12.952 profissionais do sexo feminino, 2.296 mulheres trans e travestis, 599 profissionais do sexo masculino e 67 homens trans.
Segundo dados do IBGE de 2019, 1,4% dos 21,2 milhões de mineiros se declararam homossexuais ou bissexuais, o que corresponde a cerca de 300 mil pessoas. Ao mesmo tempo, até agosto de 2022, Minas Gerais tinha somente 894 usuários da PrEP cadastrados, segundo a SES-MG, um número bem pequeno diante de toda a população LGBTQIA+ do Estado.
Em Belo Horizonte, os dados relativos à PrEP levam em consideração o número de distribuição dos medicamentos (dispensações), o que apresentou um aumento nos últimos anos. Se em 2019 eram 1.802 dispensações e 1.696 no primeiro ano da pandemia, o número saltou para 2.580 em 2021 e, até julho de 2022, já chegava 2.396 medicamentos distribuídos.
“As pessoas não conhecem”, diz travesti
A travesti Wanessa concorda que o que falta para a PrEP chegar à população é a publicidade para esse público. “Como uma empresa venderia pão de queijo se as pessoas não soubessem que ele existe? O que falta é informação, fazer publicidade mesmo”, diz.
Segundo ela, atualmente, o conhecimento sobre o medicamento preventivo está restrito a poucas pessoas. “Tinha que ser uma coisa natural, estar disponível em todo bairro para todo mundo ter acesso. Não tem que ser algo que a gente precise ser encaminhado por alguém, todas precisam conhecer sobre isso. Cito o exemplo do Ambulatório Trans do Hospital Eduardo de Menezes, a que algumas meninas têm acesso, mas muitas outra nem sabem da existência”, pontuou Wanessa.
O infectologista Unaí Tupinambás destaca a importância de as pessoas com maior risco de contaminação procurarem o serviço de saúde para, primeiramente, fazer o teste de HIV e, em seguida, avaliar o uso da PrEP. “Juntas, essas ferramentas da estratégia e prevenção combinada são muito importantes pra conseguirmos eliminar a pandemia de Aids, quem sabe, até 2035”, explica o especialista.
Queda no HIV e aumento nas ISTs
Dados da Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG) indicam que, desde o início da distribuição do medicamento, os novos diagnósticos de pessoas infectadas pela Aids vêm caindo a cada ano. Em 2019, foram 5.149 contaminações pelo HIV. No ano seguinte, o número foi reduzido para 3.942 e, em 2021, chegou a 2.659.
Por outro lado, as Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) apresentaram crescimento nos últimos anos no Estado, especialmente a sífilis, que registrou um aumento de 2.149% em um intervalo de 10 anos. Segundo dados da SES-MG, os casos de sífilis adquirida (transmitidas de uma pessoa para outra) passaram de 712 em 2011 para 16.017 em 2021.
A pasta foi questionada sobre números relativos a outras ISTs, como herpes genital, cancro mole, HPV, Doença Inflamatória Pélvica (DIP), donovanose e gonorreia, entre outras. Entretanto, segundo a secretaria, dentre essas doenças, somente a sífilis é de notificação compulsória. “Dessa forma, a SES-MG possui informações epidemiológicas referentes só a essa doença”, respondeu.
Diante desses números, o infectologista Unaí Tupinambás destaca a importância de utilizar também os demais métodos de prevenção, especialmente a camisinha, já que a PrEP não previne contra outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). “O uso do preservativo vem caindo no mundo todo, desde antes do surgimento da PrEP. Aqui, no Brasil, também, muito por conta da falta de campanhas de educação sexual e dessa maré conservadora”, finaliza.
Perguntas e respostas sobre a PrEP
O que é a PrEP?
Trata-se da combinação de dois medicamentos (tenofovir + entricitabina).
Para que serve?
Juntas, as substâncias são capazes de bloquear alguns “caminhos” que o HIV usa para infectar o organismo, impedindo, assim, que as pessoas adquiram a Aids.
Como se toma?
Deve ser tomado diariamente por seus usuários para garantir maior proteção. Entretanto, o seu uso chamado “sob demanda” também pode ser indicado por especialistas, consistindo na ingestão 24 horas antes da exposição e nos três dias seguintes à prática sexual.
Entretanto, segundo a Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG), caso a medicação não seja administrada diariamente, pode “não haver concentração suficiente na corrente sanguínea para bloquear o HIV”.
Onde pegar a PrEP?
De acordo com a Prefeitura de Belo Horizonte, a PrEP é ofertada atualmente em quatro locais da cidade, entretanto, antes, é preciso fazer o agendamento (nos horários indicados), para se passar por um cadastro.
Nas outras cidades de Minas Gerais, as pessoas interessadas em fazer o uso da PrEP devem procurar uma das 29 unidades dos Serviços de Atenção Especializada (SAE) do Estado.
É preciso fazer um acompanhamento?
Sim. Depois da primeira consulta com infectologista e a realização de exames clínicos e laboratoriais, a pessoa retorna até duas semanas depois para receber os resultados e o médico definir se a utilização do PrEP será indicada. Depois disso, o paciente é acompanhado por meio de consultas pré-agendadas a cada três meses. Uma vez iniciado o tratamento, não há fila de espera para o acompanhamento do paciente, segundo o município.
Fonte: O Tempo