Implementada de forma gradual nos estados brasileiros, a CIN (Carteira de Identidade Nacional) deve substituir o RG (Registo Nacional) em até dez anos. Criada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), a iniciativa tem recebido críticas de entidades LGBTQIA+ por requisitar o preenchimento de campos como “sexo” e “nome social” que podem, segundo elas, gerar situações de “constrangimento” e “humilhações” para a população trans e travesti no país. Além disso, pontuam que não houve diálogo do governo federal com a comunidade para a formulação do novo documento.
Por esse motivo, na semana passada, a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) protocolaram uma ação civil pública contra a União na 13ª Vara Federal Cível da SJDF (Seção Judiciária do Distrito Federal) pedindo a suspensão da emissão da CIN, que já está sendo emitida no Rio Grande do Sul, Acre, Goiás, Minas Gerais, Paraná, além do Distrito Federal.
Seguindo o estabelecido em fevereiro de 2022, a CIN adota o número de inscrição no CPF (Cadastro de Pessoas Físicas) como registro geral, único e válido para todo o Brasil, diferentemente do atual RG, que é estadual. Esse mesmo decreto também determina como essencial a inclusão de nome de registro, nome social e sexo ainda na mesma face do documento.
Para as entidades, o novo formato abre “margens para violências diversas, humilhações e tratamentos degradantes devido à cultura de ódio transfóbico que vivemos no Brasil”.
“É um problema porque vai acabar constrangendo quando a pessoa se apresentar com o documento e estar ali uma incongruência no sexo”, pontua a presidente da Antra, Keila Simpson. O campo sexo não é um item requisitado no atual RG e os campos “nome social” e “nome de registro” aparecem em páginas diferentes.
Procuradas, a AGU (Advocacia Geral da União) e o Ministério da Economia não responderam aos questionamentos da reportagem até a publicação.
A última alteração do RG aconteceu em 2019 e permitiu a inclusão do nome social para pessoas trans e travestis. Apenas primeiros nomes ou nomes compostos são alterados, sendo mantidos os sobrenomes. O nome de registro permanece no documento, mas no verso. Para solicitar a inclusão do nome social é preciso procurar os órgãos responsáveis pela emissão, preencher um requerimento e uma autodeclaração garantindo ser transexual ou travesti.
Para a comunidade LGBTQIA+, a inclusão do nome social foi um avanço, uma vez que permitiu que pessoas trans e travestis fossem reconhecidas a partir do gênero com o qual se identificam, pelo menos socialmente. “O uso do nome social interfere diretamente nas relações desses grupos vulneráveis no meio social ao qual pertencem e está amparado pela proteção da dignidade da pessoa humana”, diz trecho da ação civil pública.
A inclusão do nome social no RG não significa mudança na certidão de nascimento. Este processo, bem mais burocrático, é chamado de retificação. Para fazer as alterações no registro civil de nascimento, mesmo que sem a necessidade da presença de um advogado ou um defensor público, a pessoa deve apresentar mais de 10 documentos diferentes e se apresentar em um cartório de registro civil de pessoas naturais.
Para quem tem o nome e o sexo retificados nas certidões de nascimento, a transição do RG para a CIN não deve ser um problema. Segundo Keila, da Antra, nestes casos, as chances de constrangimento são menores, uma vez que as informações aparecerão atualizadas e sem qualquer discordância entre elas.
No Rio Grande do Sul, primeiro estado a emitir a CIN, 12 novas carteiras de identidade com nome social foram emitidas desde julho pelo órgão de identificação, o IGP-RS (Instituto Geral de Perícias do Rio Grande do Sul). Nenhuma reclamação foi registrada, complementa a entidade.
Sexo no documento
Para os autores da ação civil pública, a inclusão do campo sexo no documento nacional não tem base ou necessidade administrativa ou burocrática. Para pessoas trans que não tem o nome retificado, isso representa uma exposição que abre brechas para violências e violações de direitos.
Gustavo Coutinho, um dos advogados responsáveis pela ação contra a União, explica que há documentos importantes que não requerem este tipo de informação, como é o caso do título de eleitor, emitido pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), e também do CNS (Cartão Nacional de Saúde). Para ele, são documentos que não expõem as pessoas trans, intersexo e travestis a um tratamento vexatório.
“Caso haja uma decisão desfavorável [à ação civil pública] em primeira instância, o que não acreditamos, nós continuaremos, não só em segunda instância, mas também nos tribunais superiores”, completa o advogado.
Segundo estudo de 2020 da Faculdade de Medicina de Botucatu da Unesp (Universidade Estadual Paulista), 1,9% da população brasileira é trans ou não-binária, o que representa 4 milhões de pessoas. Como todos os estados devem aderir à CIN até março de 2023, as entidades veem na suspensão uma oportunidade de obrigar o governo federal a dialogar com a comunidade LGBTQIA+.
“Se o decreto tivesse a possibilidade de ser debatido antes da emissão dos primeiros RGs, seria muito melhor. A gente sabe que os estados ainda são poucos. Por isso, a nossa urgência de mover essa ação, para que as pessoas possam repensar e achar mecanismos que não vão constranger”, explica Keila Simpson, da Antra.
Fonte: UOL