(Opinião) ‘Surubinha de Leve’: sobre músicas machistas e execração pública de pessoas negras
Não se falou em outra coisa essa semana. Mc Diguinho lançou a música Surubinha de Leve. Entre outras coisas, o refrão da música diz: Só uma surubinha de leve, surubinha de leve / Com essas filha da puta / Taca a bebida, depois taca a pica / E abandona na rua”. Eu (e muita gente) não conhecia a música até que uma mulher (branca) fez uma série de fotografias protestando contra a letra da música e denunciando o caráter machista e de incitação ao estupro que a letra traz. Em sua página no Facebook, Yasmin Formiga postou:
A denúncia de Yasmin ganhou eco nas redes sociais, mobilizou diversas outras pessoas que compartilharam mais de 140 mil vezes o seu texto, fazendo com que as plataformas de vídeo/música YouTube, Spotify e Deezer retirassem a música de seus catálogos. A repercussão foi tanta que o portal O Globo reuniu especialistas para avaliar se a música fazia ou não apologia ao estupro. Para os especialistas do “O Globo” não há como tipificar a música como crime de apologia ao estupro, mesmo que incite a violência contra mulheres.
A música estimula primeiro embriagar as mulheres para depois fazer sexo com elas e abandoná-las. Para mim a uma incitação direta ao sexo não-consensual que para acontecer pressupõe que a mulher esteja embriagada. Além disso, a música estimula que após o sexo, essa mulher seja abandonada.
Assim como as tantas pessoas que fizeram eco a denúncia de Yasmin, eu também considero a música machista, também acredito que a mesma incita à violência contra mulheres e perpetua a misoginia, o patriarcado e a exploração sexual das mulheres.
Entretanto, a questão que queria abordar aqui é outra, é porque a denúncia de Yasmin teve a repercussão que teve, enquanto que, em outros momentos, outras mulheres já denunciaram essas mesmas questões em outras músicas e não foram ouvidas da mesma forma. Uma possível explicação para o sucesso da denúncia de Yasmin seriam as imagens que, junto ao texto, materializaram a violência aos receptores da mensagem. Outra explicação, seria o fato de Mc Diguinho ser um homem negro da favela, automaticamente um potencial estuprador/agressor/violentador de mulheres.
Porque as músicas dos homens brancos não recebem tamanha ojeriza?
Há não muito tempo, algumas mulheres/feministas também denunciaram o machismo e a violência contra mulher presente em algumas das canções sertanejas que, diariamente, alcançam o topo das paradas musicais do Brasil. Na época, a problematização girava em torno de duas canções de duas duplas sertanejas bem populares do movimento sertanejo atual: Henrique e Diego e Henrique e Juliano. A música de Henrique e Diego, ‘Ciumento Eu’, naturaliza relacionamentos abusivos e o comportamento obsessivo de namorados ciumentos. O eu-lírico da música é um stalker. A letra diz:
A música de Henrique e Diego é a terceira mais acessada na plataforma “Letras”, está em terceiro lugar entre as mais populares dos artistas no Spotify e possui mais de 21 milhões de visualizações no YouTube, onde 105 mil pessoas sinalizaram que curtiram, contra apenas 4 mil que não gostaram.
Outra música que também tem uma narrativa machista e que fez muito sucesso em 2017 é “Vidinha de Balada” de Henrique e Juliano. A música foi a terceira mais tocada nas rádios do Brasil em seu gênero, segundo dados da Connectmix. Está em primeiro lugar entre as mais populares dos artistas no Spotify, e possui mais de 346 milhões de visualizações no YouTube.
Vidinha de Balada é outra que também naturaliza relações abusivas. Na canção, a mulher seria obrigada a casar, quer queira ela ou não. O eu-lírico da canção é um cara que obriga a mulher a permanecer no relacionamento, é um cara que veio acabar com a diversão da mulher e colocá-la dentro de um relacionamento que, para ele, é o melhor pra ela.
E não param por aí. O que não falta no universo sertanejo são músicas que naturalizam a violência contra mulher em suas mais variadas formas. Segue alguns exemplos:
“Sua boca diz não quer e meu ouvido diz duvido, duvido, duvido” – Marcos e Belutti
“Se não deixa pegar o celular é porque tá traindo e tá mentindo,alguma coisa tem” – Henrique e Diego
“Suas coisas põe na mala. Não me encoste, nem me fala. Tô doido pra te matar, Muié” – Bruninho e Davi.
“Você me fala que não, mas eu te provo que sim. Você dúvida se é bom, e eu te mostro no fim!” – Biel
“As mina pira, pira; Toma tequila, sobe na mesa, pula na piscina As mina pira, pira; Entra no clima, tá fácil de pegar, pra cima!” – Fernando e Sorocaba
“Quem gosta de homem bonito é viado / Muié gosta é de dinheiro / Se o filé é de primeira / Não gasta muito tempero / Se muié virar galinha / Eu vou morar no galinheiro” – Israel e Rodolfo
Intencionalmente só incluí músicas de artistas brancos que não coincidentemente são músicas consideradas de sucesso, que tem um bom número de execuções nas plataformas de streaming e reproduções no YouTube. Todas as músicas citadas anteriormente possuem uma narrativa que vai desde a incitação ao sexo não consensual – estupro – à manutenção de relacionamentos abusivos, onde a palavra final é do homem, ele quem decide o que é melhor pra mulher. No pior dos casos, temos a música de Bruninho e Davi com uma ameaça de morte.
Com isso eu quero dizer que quando homens negros são machistas os mesmos devem passar ilesos? Não. Quero chamar atenção que o racismo se disfarça de uma rejeição a misoginia e ao machismo que só se manifesta quando são os homens negros os machistas e misóginos.
Uma boa prova para isso é o caso “Chico Buarque”. Recentemente Chico esteve envolvido em uma polêmica, quando uma de suas músicas novas foi considerada machista por diversas mulheres, entre elas a jornalista Flávia Azevedo, que publicou um texto nos sites “Correio da Bahia” e “Huffpost Brasil”, onde falava do “amor datada de Chico Buarque”. Boa parte da produção fonográfica de Chico Buarque é considerada machista. Entretanto, em agosto do ano passado, quando foi lançada “Tua Cantiga”, diversas pessoas vieram a público defender Chico, argumentando que o machismo de Chico deveria ser relevado por causa de sua história, de sua contribuição para a música brasileira, e claro – mesmo que não dito – porque Chico é branco e faz parte da elite intelectual do nosso país
O lugar social ocupado por Chico Buarque cria um escudo, dá um passe livre para certos “deslizes”. Para Chico, havia (sempre houve) uma licença poética que justificativa aquilo que suas canções entoavam/entoam. Esse mesmo lugar social faz com que a afirmação de homens brancos de que a mulher “vai casar com ele sim” e que o ciúme dele é “excesso de cuidado” seja lida como romantismo. Caso fosse homens negros cantando essas músicas, ou caso fossem essas músicas uma produção periférica, vinda da favela, tal qual é o Funk e o Pagode, não haveria para eles a mesma passabilidade que a branquitude tem.
Precisamos nos indignar contra o machismo e a violência contra mulher em suas mais diversas expressões. Não existe coisa mais ou menos machista. Não existe situação mais ou menos misógina. Existe o machismo, existe a misoginia e existe as multifacetadas formas de expressão e materialização da violência contra mulheres. Desde aquela que é praticada nos bairros periféricos e por pessoas negras, até as inúmeras violências exercida pelos homens brancos, do alto do poder que lhe é conferido. A indignação das diversas violências contra as mulheres não pode é vir camuflada e acomodada nos pressupostos e estereótipos racistas que institucionalizaram os homens brancos como príncipes encantados e os homens negros como os lobos maus, sempre aptos a estuprar, agredir, e violentar mulheres.
*Elder Luan – Graduado em História e doutorando do Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e Feminismo.
Revisão de Vinícius Zacarias – Museólogo, mestrando em Ciências Sociais e pesquisador de Performances de Homens Negros Gays (UFRB).