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Opinião: Lacração, Pink Money, e a nova música “feminista” de Cláudia Leitte

Pra começar o texto dessa semana preciso fazer duas considerações: a primeira é que sou fã de Cláudia Leitte. Todas aquelas que são próximas a mim sabem disso. Gosto das músicas, principalmente as baladas românticas da época do Babado Novo. Sempre que posso vou aos shows e nos últimos anos tenho acompanhado mais de perto a carreira de Cláudia. Entretanto, nos últimos anos também tenho dedicado parte de minha vida a estudar questões de gênero, sexualidade e feminismo, e a participar do movimento LGBT, principalmente no meio universitário. É então desse lugar que falo, e no intercâmbio desses vínculos que venho opinar sobre a nova música de Cláudia, intitulada pela própria, como um “Hino Feminista”.

Na última sexta-feira, 08 de dezembro, Cláudia Leitte lançou Lacradora, a sua mais nova música de trabalho em parceria com Maiara e Maraísa. Poderia ser só mais uma música de Claudinha, com uma batida super parecida com seu último lançamento ‘Baldin de Gelo’. Poderia também ser só mais uma música – entre as tantas que já existem – que fala sobre inimigas e recalcadas, tal como Xô Pirua, lançada pela artista em 2010, como uma das faixas de seu álbum ‘Máscaras’. Entretanto, no processo de divulgação do seu novo single, Cláudia anunciou que a música se tratava de um “Hino Feminista”, e chegou a convidar diversas mulheres famosas, entre elas Taís Araújo, para falarem o que seria uma “Mulher Lacradora”, em um vídeo que foi disponibilizado dias antes do lançamento.

Eis então que um dia antes do lançamento, ela divulga a letra da música, que entre outras coisas é marcada por uma refrão que diz: “Copo na mão e as inimigas no chão / Copo na mão e as inimigas no chão / Claudinha lacradora dando nas recalcadas / Enquanto a gente brinda, elas tomam pisão”. A primeira a se manifestar foi Pitty, que fez um post em seu twitter dizendo: “Amoras, ai ai ai. ‘Hino feminista’ que ataca outras mulheres e estimula competição com esse papo de ‘recalcadas e invejosas“.

E é a partir da constatação feita por Pitty, de que não há nada de Feminista na letra de Lacradora, que faço então minhas considerações.

Cláudia Leitte não tem vivência no feminismo, não tem experiência com questões feministas, e quase nunca se posiciona em favor das mulheres vulnerabilizadas, exceto em casos de grande repercussão nacional. Isso a impediria falar sobre feminismo? Óbvio que não. A sua experiência enquanto mulher lhe permite externar as inúmeras violências sexistas que sofreu e deve sofrer, caso quisesse, poderia inclusive falar do seu lugar de mulher branca, rica, dentro dos padrões de beleza e aceita socialmente, e do privilégio que está em detrimento de muitas mulheres negras. Poderia falar o quanto diversas mulheres ainda são cotidianamente oprimidas, silenciadas, assediadas, sexualizadas, violentadas por seus companheiros, entre outros temas, como por exemplo o que foi abordado por Karol Conka em Lalá.

Mas não foi isso que Claudinha escolheu! Preferiu cantar uma música composta por um homem, que fala sobre um suposto empoderamento feminino – super na moda nos dias atuais -, que se dá em detrimento da opressão de outras mulheres. O Empoderamento que Cláudia canta em “Lacradora” não tem uma consciência de grupo, não pensa em uma igualdade coletiva, pensa apenas na sua ascensão individual, enquanto outras ficam no chão, humilhadas e pisadas – literalmente.

O discurso empoderado de Claudinha dialoga muito mais com a pinkwashing e o pink money, do que com o feminismo.  A expressão pinkwashing tem sido utilizada para referir-se aos contextos sociais onde as pautas LGBT são utilizadas para mascarar outros tipos de violência, a exemplo do machismo, classismo, racismo, como é o caso de Israel, que vende a bandeira LGBT e ideia de um paraíso gay e democracia sexual em Tel Aviv. Israel usa os direitos LGBT como um atestado civilizatório que tenta encobrir a real situação – racista e colonizadora – do seu povo. Fui tão longe pra dizer que Claudinha, assim como alguns outros artistas, tem feito uma “pinkwhasing” em suas carreiras, músicas e foco de público, interessadas única e exclusivamente no pink money, que segundo matéria publicada esse ano no site Correio da Bahia, já movimenta cerca de R$ 150 bilhões por ano.

Esse discurso da diversidade através dessa “lavagem cor de rosa” não admite que não há nada de diverso no seu público, nem no tipo de entretenimento que vem sendo produzido. O foco tem sido tão somente no que de lucro esse público gera, que a defesa dos direitos LGBTs tem se reduzido a isso: lacração, fechação e um empoderamento individual que só uma parte muito específica da comunidade gay tem acesso. É um movimento que tem interesses bem específico: transformar a diversidade em objeto de consumo para aqueles que tem condições sociais de consumir. Um exemplo bastante emblemático desse movimento, foi a campanha contra a homofobia que foi lançada pelo Comitê da ~diversidade~ da Coca Cola, que no seu grupo só continha homens brancos.

Esse fenômeno não se limita a Cláudia Leitte, outras artistas têm se utilizado da bandeira LGBT para marketing pessoal. O que temos que pensar, é até onde essa visibilização de fato nos ajuda, e em troca de que continuaremos a ser peças na mão de uma diversidade que só visibiliza mais do mesmo. É muito fácil se vestir com as cores do arco-íris em uma festa LGBT que tem entradas caríssimas e cachê super alto, assim como é fácil colocar homens brancos pra casarem em cima do trio que puxa um bloco pra homens gays brancos. Complicado mesmo é se posicionar contra a violência LGBTfóbica que mata um LGBT a cada 28 horas no Brasil, é visibilizar as bichas que estão do lado de fora da corda, e que não podem consumir os bens que essa diversidade tem produzido.

O empoderamento pregado por Claudinha em Lacradora é tão individual e seletivo, que essa política da diversidade tem focado em um perfil muito específico da comunidade LGBT: o homem gay, branco, de classe média, que tem acesso as festas, blocos de carnaval, e eventos altamente elitizados. Pra esse público ela realmente pode ser uma representante da diversidade, e Lacradora pode muito bem ser um “hino” empoderado feministo. Afinal, dentro desses contextos, não fica tão difícil assim pensar quem pode tá com o copo na mão, e quem de fato nunca saiu do chão.

*Elder Luan – Graduado em História e doutorando do Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e Feminismo.

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