Ícone do site Dois Terços

Literatura: Escritor baiano faz análise das memórias de Madame Satã

 “Entre o feminino e o masculino, a elegância e a indecência, a valentia e a sedução de Madame Satã que fez fama como malandro bom de briga.”


“Entre o feminino e o masculino, a elegância e a indecência, a valentia e a sedução de Madame Satã que fez fama como malandro bom de briga.”

* Elenilson Nascimento

Imagine você viver num Brasil onde você é descriminado por ser pobre, preto, feio, analfabeto e gay. Se isso parece uma coisa muito comum nos dias de hoje, mesmo com todas as ONGs e leis contra a discriminação, imagine isso nos anos 30/40. Pois, o livro Memórias de Madame Satã, com as histórias narradas pelo próprio protagonista ao jornalista Sylvan Paezzo, fala justamente desses preconceitos e estigmas que vitimiza o povo negro desse país nada igualitário.

Muitos devem lembrar do Madame Satã, cujo verdadeiro nome era João Francisco dos Santos, personagem vivido pelo baiano Lázaro Ramos nas telas do cinema, mas poucos sabem realmente quem foi essa figura polêmica e contraditória que não foi uma pessoa nada boazinha, muito menos o bandido mau caráter pintado pelos jornais da época. Pobre (*mesmo sendo filho renegado de um fazendeiro), negro, analfabeto, tinha 17 irmãos e, para completar o ranço de senzala que o empurraria para a marginalidade, era bastante irônico, desaforado, inteligente, transformista e tinha o sonho de brilhar nos palcos como a Mulata do Balacochê, mas era também conhecido como Caranguejo da Praia das Virtudes e Jamaci, a rainha da floresta.

“Em 1907 o meu pai morreu. Foi quando começou a desgraça. (…) Os Damião chamaram minha mãe na casa grande e disseram Firmina junta seus filhos e vai embora que você não tem direito a nada. Ou sai por bem ou a gente chama o inspetor de quarteirão. (…) Eu vim ao mundo junto com o século XX” – era assim que Satã anunciava o ano de seu nascimento, 1900. De infância difícil, foi negociado pela mãe em troca de uma égua quando tinha apenas sete anos. Antes de partir com o menino, o comerciante de nome Laureano prometeu que lhe daria estudo, acordo que obviamente não foi cumprido. Em pouco tempo transformou-se em escravo particular, fazendo trabalhos pesados sem qualquer remuneração. Viveu de bicos em Recife, até mudar-se para o bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, onde trabalhou como entregador de marmitas, cozinheiro e segurança de casas noturnas, onde entre outras funções, protegias as prostitutas contra agressões, roubos, calotes, estupros. O livro descreve até a sua primeira relação: “Comecei minha vida sexual aos 13 anos quando as mulheres da Lapa organizavam bacanais dos quais participam homens, mulheres e bichasa. Com essa idade eu fui convidado para alguns e funcionei como homem e como bicha e gostei mais de ser bicha e por isso fui bicha”.

Mas o mundo gira e, por volta de 1932, Satã passou a viver com uma prostituta de nome Laurita – ano que o Estado de São Paulo pegou em armas pela convocação de uma Assembleia Constituinte durante o governo do ditador Getúlio Vargas (*que agora está sendo endeusado no cinema) e que coincidia com uma era de samba de Francisco Alves, Noel Rosa, Ismael Silva, Lamartine Baboe Carmen Miranda (amiga pessoal do Satã) que brilhavam nos palcos. Em suas apresentações artísticas, Satã vestia pomposos trajes femininos, ameaçando a moral e os rígidos padrões da época. Gay assumido, negro, pobre e capoeirista, respondeu dezenas de processos, entre eles, treze por agressões, quatro por resistência à prisão, três por desacato, um por ultraje ao pudor e um por homicídio. Satã aumentou a sua fama ao tentar entrar no Clube High Life (cena mostrada no filme), frequentado apenas pela elite branca carioca. Mas a sua vasta ficha é rica dos episódios decorrentes do enfrentamento com policiais e desacato à autoridade.

Muito mentiroso, inventava histórias sobre ele próprio, não raro, valentias, vantagens. Consta ainda ter sido responsável pelo seu próprio marketing pessoal, ao entrar para a história da malandragem com a imagem “de gay muito macho, bom de briga e fera na navalha, ao narrar como batia em policiais violentos”. De qualquer forma, Satã acabou tornando-se um personagem emblemático da vida noturna e marginal da boêmia carioca. Viveu num mundo às margens do Brasil oficial verde e amarelo, um universo à parte, com suas leis próprias, códigos e rituais, um universo em que ele foi rei e rainha, santo, santa e satanás. E esse é o pano de fundo que serviu de cenário para as memórias de Satã, que foram usadas aleatoriamente no filme, sobre os pontos de vista do biografado. E apesar do filme ter recebido vários prêmios no Brasil e três outros no exterior (Cuba, Argentina e Estados Unidos), teria sido uma obra feita para só chocar, segundo alguns críticos, ao ponto de, durante uma exibição, uma demorada cena de sexo gay ter sido determinante para que jurados abandonassem a sala de projeção em um festival de cinema.

Em 1942, por exemplo, Satã desfilou no bloco de rua “Caçadores de Veados”, com a fantasia Madame Satã, inspirada em filme homônimo de Cecil B. DeMille. “Quando o Carnaval foi chegando as bichas me falaram que eu deveria concorrer ao Concurso de Fantasias do Teatro República. Mas eu tinha medo de passar uma vergonha”. E dotado de uma índole irônica e extrovertida, Satã acabou encantando-se pelo Carnaval carioca. Foi assim que, em 1942, surgiu seu apelido.

Frequentador assíduo do bairro onde morava (conhecido como reduto carioca da malandragem e boemia na década de 30), onde muitas vezes trabalhou como segurança de casas noturnas, foi preso preso várias vezes, pelos motivos mais esdrúxulos, chegando a ficar confinado no famoso presídio da Ilha Grande, agora em ruínas. “Paguei essa cadeia e nesse tempo estava lá o Luiz Carlos Prestes”, escreveu. Muitas vezes Satã enfrentava a polícia, sendo detido por desacato à autoridade ou só por olhar para um policial. Considerado exímio capoeirista, lutou por diversas vezes contra mais de um policial, geralmente em resposta a insultos que tivessem como alvo mendigos, prostitutas, travestis e negros. E acabou sendo condenado pela morte de alguns desses policiais.

O livro também descreve o sexo entre os presos nas cadeias: “Poucos foram os malandros novos que não viraram esposas dos mais velhos nas primeiras detenções. Um que quis sair invicto foi o Mãozinha. Um pugilista de São Paulo que tinhauma das mãos menor do que a outra mas que batia carteira com muita categoria. O Mãozinha era valente e encarou os que quiseram jantar ele. Mas era um menino bonito e os malandros ficaram com mais vontade ainda”.

Mas, relendo algumas partes, sendo uma vergonha desse país que se diz tão moderno não conheça a história desse cara. Seria muito bom se o Brasil, além de se interessar só por futebol, desse valor aos grandes autores, às figuras públicas interessantes e suas histórias literárias muito ricas. Algumas delas envolvem temas polêmicos que chocaram a sociedade quando foram publicadas e que ainda são tabu hoje em dia. E, de longe, esse livro sobre o Satã está no topo da lista. De uma história sobre uma personagem gay até crimes como racismo e estupro, não faltam personagens brasileiros para representar temas polêmicos.

Nos anos 1970, o jornal de esquerda O Pasquim (*ainda vou pesquisar e escrever sobre os porões desse jornal controverso) recuperou a história desse estranho personagem da boemia carioca em duas entrevistas. O interesse do público por sua trajetória foi tamanho que em pouco tempo ele também aparecia em programas de auditório recontando suas aventuras e relembrando o passado com saudade.

Hoje, Satã é considerado uma referência na cultura marginal urbana do século XX. Faleceu logo após a sua última saída da prisão, em abril de 1976, em sua casa, hoje um camping. “A culpada sempre foi a ignorância. A ignorância botou a fome na barriga de muito vagabundo. E como os vagabundos eram ignorantes e analfabetos só sabiam arranjar comida matando ou roubando. Se tivessem instrução não iam ser vagabundos porque teriam oportunidades”. P.S. A capa do livro foi feita por Ziraldo.

E o filme Rainha Diaba, com Milton Gonçalves, de 1974, também faz referências ao Satã. A história gira em torno de um gay responsável pelo controle do narcotráfico. (“MEMÓRIAS DE MADAME SATÔ, narrado para Sylvan Paezzo, biografia, 207 págs, editora Lidador – 1972).

*ElenilsonElenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina.

Sair da versão mobile