“Antes os amigos eram as pessoas que falavam coisas equivocadas sobre sexo. Hoje é a internet e os influenciadores”. A fala do sexólogo João Ribeiro ilustra uma das polêmicas que tomou conta das redes sociais na última semana. Em um podcast, um influenciador fitness com quase 500 mil seguidores classificou o uso de camisinha em um relacionamento fechado como “falta de respeito” e “antibiológico”.
A falta de conhecimento e de compromisso com o uso do preservativo em todo o país é refletida nos números. Dados da última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), divulgada pelo Ministério da Saúde em parceria com o IBGE, mostraram que mais de 1 milhão de pessoas receberam diagnóstico de Infecção Sexualmente Transmissível (IST) durante o ano de 2019. O número corresponde a 0,6% de toda a população brasileira maior de 18 anos.
Entre todos os indivíduos com 18 anos ou mais ouvidos que tiveram relações sexuais nos 12 meses anteriores à pesquisa, 59% afirmaram não ter usado camisinha nenhuma vez. E 22,8% declararam usar em todas as relações, 17,1% dizem usar às vezes.
Em todo o mundo, são 376 milhões de casos anuais de clamídia, gonorreia, tricomoníase e sífilis, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Por dia, mais de 1 milhão de pessoas entre 15 e 49 anos entram nas estatísticas das infecções.
Carlos Moraes, ginecologista e obstetra pela Santa Casa de São Paulo e membro da FebrasGO, se depara com essa realidade todos os dias no consultório.
“Em um mundo ideal, todo casal deveria usar preservativo. No mundo real, o que a gente vê, apesar de eu não concordar com a opinião desse rapaz, é o contrário. Muitas vezes, os jovens, quando estão iniciando um relacionamento, usam preservativo. Depois de um certo tempo, parece que chega em um grau de confiança, e param de usar. Isso é uma questão comportamental, nem é a orientação que a gente dá no consultório”, conta.
A falta de campanhas que incentivem o uso também preocupa. “A questão da conscientização do uso do preservativo exige uma campanha contínua. No passado, víamos em algumas ocasiões, como carnaval, mas já faz um bom tempo que a gente não vê. As campanhas de conscientização têm que ser feitas continuamente, não só em datas especiais”, alerta.
Moraes cita também o machismo como um componente importante na forma como a discussão é colocada atualmente. “São duas questões importantes: precisa haver um incentivo, na parte de educação sexual nas escolas, e um reforço em relação à questão das infecções. Por outro lado, é inegável que um influenciador com vários seguidores externa um pouco o que a sociedade vive. Não concordo com a opinião do rapaz, mas é basicamente o cenário do dia a dia do consultório, que reflete um pouco o machismo da sociedade, que parece que empurra para a mulher a responsabilidade sobre as infecções, quando deveria ser uma discussão do casal”, afirma.
A opinião é compartilhada pelo sexólogo João Ribeiro. Segundo ele, posicionamentos como o do influenciador tem como base uma “ideia machista” de que a única razão para usar a camisinha é prevenir uma gravidez indesejada.
“Nós já não temos educação sexual. Muitas vezes, os jovens aprendem sexualidade incorretamente com amigos. Não conversam em casa porque sexo é tabu. Antes, os amigos eram quem falavam coisas equivocadas sobre sexo, hoje é a internet, os influenciadores digitais. Esse tipo de conversa sem embasamento científico, a não ser uma ideia machista imposta por parte da sociedade. Camisinha é saúde. Pessoas com esse discurso precisam ser penalizadas”, diz.
“Se apenas 10% do público dele seguir à risca as ideias desse influenciador, 50 mil pessoas colocam suas vidas e de seus parceiros em risco”, alerta.
O ‘medo’ do HIV
No início dos anos 1990, o Brasil passou por uma grande epidemia de HIV. Os especialistas apontam que com o amadurecimento de uma nova geração e a modernização dos tratamentos, a gravidade da doença já não assusta como há 30 anos, fazendo com que os métodos de prevenção sejam totalmente negligenciados.
“O fato de hoje em dia existir tratamento para HIV, em muitos casos é uma doença crônica, de certa maneira impacta em não usar o preservativo. Estamos falando de gerações diferentes. A epidemia ocorreu nos anos de 1980, 1990, e pegou uma geração. A geração atual não sabe o que é isso. Não viu aquela crise que casais na faixa dos 50 anos vivenciaram. Os mais jovens não estão muito preocupados com isso, existe o tratamento, está um pouco mais simples, e acho que de uma certa maneira, não assusta tanto. Mas existem outras infecções que também atrapalham — e muito – o paciente”, afirma Moraes.
Ribeiro afirma que muitos jovens apontam soluções “rápidas” para situações onde o preservativo não foi utilizado.
“Anos atrás a única forma de prevenção era a camisinha. No momento que o coquetel foi criado, e as pessoas conseguiram ter qualidade de vida, deixam de ter essa preocupação. E isso não acontece só com o HIV. Faço palestras em escolas, nós escutamos muitos alunos falando que se ficarem grávidas, ou se engravidarem alguém, é ‘só tomar a pílula do dia seguinte’. As pessoas pensam que a camisinha é apenas para gravidez, esquecem os outros riscos e as ISTs, e é sempre bom ressaltar que a camisinha não impede de ter prazer. As empresas têm desenvolvido diversas opções de látex que são mais finas e com sensação de quase pele com pele”, conta.
“Existe também aquele discurso machista, independentemente da orientação sexual, de que camisinha é algo ruim e atrapalha no momento de intimidade. O uso da camisinha é uma proteção à vida, à saúde e aos sonhos, pois quando uma pessoa é contaminada com uma IST, como é o caso do HIV, ou descobre uma gravidez indesejada, precisa reformular tudo que planejou”.
Roseli Tardelli, criadora do site Agência de Notícias da Aids, perdeu o irmão para a doença, e desde então, se dedica à causa, combatendo estigmas e conscientizando sobre prevenção. A jornalista classifica o posicionamento como uma “estupidez”.
“Estou há 19 anos trabalhando cotidianamente para ajudar que as pessoas que vivem com HIV e aids tenham menos estigmas, menos discriminação. Para ajudar as pessoas a se informarem sobre uma doença que existe há 40 anos e não tem cura, quando leio uma fala dessa… Essa pessoa está a favor do não-empoderamento das mulheres. Está a favor de todas as ISTs. E está a favor do crescimento do HIV”.
“Essa postura está errada, e temos que, infelizmente, perder tempo em desconstruir ignorância, falta de informação e preconceito. Estamos há 19 anos prestando serviços e ajudando no esclarecimento com informações corretas e sérias em relação à todas as questões ligadas a sexualidade. Não se deixem influenciar por estupidez.”