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‘Identificar problemas de saúde mental entre pessoas vivendo com HIV é essencial na garantia da qualidade de vida’, diz psicóloga Márcia Urbanovick, do CRT

Não é fácil receber um diagnóstico de qualquer doença, desperta medo, insegurança e ansiedade, emoções naturais que abalam o psicológico. Receber o resultado reagente para o HIV é ainda mais complicado, cercado por tabus e estigmas, a infecção não tem cura e quando não cuidado, o HIV destrói o sistema imunológico do indivíduo, deixando-o totalmente vulnerável a doenças que podem levá-lo a morte.

Ao longo dos 40 anos da epidemia de HIV/aids, a ciência provou que a saúde mental é dos pilares da linha de cuidados para que as pessoas vivendo com HIV/aids tenham uma expectativa de vida igual ou superior a de uma pessoa sem HIV. Essa população pode vivenciar problemas de saúde mental que podem afetar sua qualidade de vida e impedi-las de procurar assistência médica, aderir ao tratamento e continuar sob cuidados.

Segundo o Unaids, pessoas vivendo com HIV correm um risco maior de desenvolver problemas de saúde mental, muitas vezes sofrendo de depressão e ansiedade à medida que se ajustam ao diagnóstico e se adaptam a viver com uma doença infecciosa crônica.

Ainda de acordo com o Unaids, pessoas vivendo com problemas de saúde mental também podem estar sob maior risco de infecção pelo HIV. Os riscos são exacerbados pelo baixo acesso à informação e conhecimento sobre HIV, incluindo como preveni-lo, uso de drogas injetáveis, contato sexual com pessoas que usam drogas injetáveis, abuso sexual, sexo desprotegido entre homens e baixo uso de preservativos.

É comum ouvir desta população que o acolhimento sem julgamentos faz diferença, principalmente no momento da descoberta do diagnóstico.

Em entrevista à Agência Aids, a psicóloga Márcia Urbanovick, do Centro de Referência e Treinamento em IST/Aids de São Paulo, falou sobre a importância da saúde mental na qualidade de vida. “Desde o início da pandemia existe esse cuidado para acolher e olhar para o bem-estar emocional e psicológico das pessoas que vivem com HIV, mas não como é hoje”, afirmou.

A psicóloga relatou que ao longo do tempo os profissionais de saúde foram se aperfeiçoando no acolhimento. “Do ponto de vista profissional, temos o privilégio de contar com gestores e ter uma equipe multidisciplinar para nos ajudar no acolhimento.”

No ambulatório em que trabalha, no bairro Santa Cruz, o perfil das pessoas que buscam atendimento é bem amplo.  “Atendemos profissionais do sexo, dependentes químicos, a maior parte da população é adulta, mas tem adolescentes e crianças também”, disse.

Como são feitos a abordagem e o acolhimento

Márcia dividiu com a reportagem as estratégias que os profissionais do CRT geralmente adotam durante o acolhimento dos pacientes no ambulatório. “Baseamos a abordagem em protocolos. No primeiro momento é importante que as pessoas recebam informações objetivas sobre as testagens e os resultados. Entendido isso, colhemos os exames e aguardamos os resultados, aproveitamos o tempo de espera e observamos a reação do paciente. As vezes as pessoas têm uma reação muito intensa, em alguns casos, mesmo com o resultado negativo, a pessoa não acredita, ela acha que algo deu errado porque tem a certeza de que passou por uma situação de risco e que se infectou. Da mesma forma, as vezes o resultado é reagente e a pessoa fica descompensada. A abordagem conta acolhimento, conversas, tiramos dúvidas e falamos sobre os tratamentos, apresentamos as opções existentes e reforçamos a importância do vínculo com o serviço de saúde” pontuou.

Ela continua: “Procuramos fazer com que a pessoa se sinta respeitada e acolhida para construirmos uma relação de troca, onde ela é a protagonista das informações que nos traz. Procuramos não diminuir o que ela sente, algumas pessoas que recebem o diagnóstico já desenvolveram a aids. O nosso foco é a vida, as escolhas e os desejos dos pacientes precisam ser levados em conta. Além de oferecermos o tratamento, temos um repertório de medicamentos e recursos que faz com que a pessoa reflita e se posicione em relação ao imaginário social da aids”, explicou a psicóloga.

A partir do diagnóstico positivo, Márcia e a equipe procura entender quais são as questões do paciente. “Precisamos entender a demanda psíquica desta pessoa, se é o tratamento, se é o medo… Algumas vezes a pessoa vem pedir ajuda porque tem outros problemas além do HIV, como dependência química, problemas conjugais, tem gente que fala sobre o sonho de ter filhos e ao receber o diagnóstico acha que acabou, nem sempre a busca é em relação ao HIV, o acompanhamento é feito a partir da escuta com nosso paciente.”

O cuidado com a saúde mental

Questionada sobre qual é a melhor abordagem da saúde mental quando assunto é HIV/aids, Marcia respondeu acolhimento.  “Precisamos conversar com o paciente e saber como ele recebeu o diagnóstico, se esperava ou não o resultado, fazer a pessoa refletir para identificar se ela está conseguindo raciocinar e processar aquela informação, se ela está demonstrando uma atitude negativa, se está em um momento de negação ou se está expressando comportamento de uma pessoa que é vítima de julgamento e se culpando, porque acha que é responsável pelo o que aconteceu. Precisamos compreender tudo isso, o nosso objetivo é fazer a pessoa entender que ela é protagonista da sua história”, mencionou a Márcia.

Qualidade de vida a partir da saúde mental

A psicóloga sempre diz aos seus pacientes que é possível viver com HIV e ter uma boa qualidade de vida e boa saúde mental. “Muitas pessoas que sofrem estigma e discriminação rejeitam e abandonam o tratamento para que ninguém descubra que ela vive com HIV, às vezes isso acontece no âmbito familiar. Apresentamos para a pessoa que existe a possibilidade da conversa, um teste para averiguar a reação das pessoas, ela não precisa se apresentar como uma pessoa HIV+, mas pode expor seu ponto de vista e ver se seu ambiente está resistindo ou não, o mais importante é que ela não desista do tratamento, a pessoa não pode se isolar pelo fato de viver com HIV”, concluiu Márcia Urbanovick.

A fala de Márcia vai de encontro ao que diz o Unaids. “Identificar problemas de saúde mental entre pessoas vivendo com HIV é essencial; no entanto, com muita frequência, essas pessoas não são diagnosticadas e nem tratadas. Há muitas razões para isso e todas precisam ser abordadas. As pessoas podem não querer revelar seu estado psicológico aos profissionais de saúde por medo do estigma e da discriminação. Os profissionais de saúde podem não ter as habilidades ou o treinamento para detectar sintomas psicológicos ou ainda podem falhar em tomar as medidas necessárias para avaliação, gerenciamento e encaminhamento se os sintomas forem detectados.”

Os serviços de prevenção, testagem, tratamento e assistência devem atender necessidades médicas complexas, psicológicas e sociais das pessoas afetadas pelo HIV e por problemas de saúde mental, que podem ser melhor gerenciados por meio de programas integrados. Abordagens integradas precisam estar em todos os setores e envolver serviços sociais, legais, de saúde e educacionais com a participação de organizações baseadas na comunidade.

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