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‘Fomos um dos primeiros casais do mesmo sexo do Brasil a registrar uma união estável’: um amor que já dura 35 anos

Genilson Coutinho,
17/02/2025 | 10h02

“Nós nos conhecemos no dia 29 de março de 1990, falamos que é a nossa data histórica. Vamos comemorar 35 anos desse encontro em 2025— nossas Bodas de Coral. Naquele dia nos casamos, foi amor à primeira vista. Foi bem cômico para falar a verdade. Eu, Tony, sou brasileiro e David é inglês. Havia me formado em Letras na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e logo em seguida fui viajar pela Europa para conhecer outras culturas. Passei um tempo morando na Espanha, Itália e França. Tinha acabado de chegar na Inglaterra quando o vi pela primeira vez.

Estávamos dentro do metrô quando começamos a trocar olhares. Descemos na mesma estação e ele não parava de me encarar até que cheguei nele e falei: “Você quer casar comigo para o resto da vida?”. E ele respondeu que não podia porque era casado. “Não sou ciumento”, respondi em seguida.

Começamos a conversar ali mesmo. Naquele dia, ficamos até duas horas da madrugada batendo papo. Ele realmente era casado, com uma mulher, há cerca de 10 anos e era diretor financeiro de um hospital em Londres. Depois de uma semana marcamos o nosso primeiro encontro. Ele levou um espaguete com temperos e vinho — tanto que este é o nosso prato preferido até hoje. Todas as sextas-feiras, nós nos sentamos à mesa e comemos espaguete com vinho para relembrar nosso primeiro encontro.

Foram cerca de seis meses ótimos. Nós nos encantamos um pelo outro, ele fala que se apaixonou pela minha ousadia, por esse sentimento de não ficar parado, de querer ganhar o mundo, e eu me apaixonei pelo jeito certinho dele de ser, do cuidado que ele tem comigo e com as pessoas ao redor. Essa ética dele, esse respeito, além do rostinho de príncipe que ele tem até hoje e dos olhos manhosos que fizeram eu me apaixonar por ele.

Acabou o meu tempo na cidade como imigrante e precisava voltar ao Brasil. Nós estávamos namorando firme, tínhamos algo muito bacana. Mas o meu plano não era morar em Londres, não me conectava com a política de lá, não tinha nada a ver com a nossa realidade no Brasil. Falei para ele que, apesar de amá-lo muito, precisava voltar e o chamei para morar comigo aqui no Brasil.

Ele pediu para esperá-lo por um ano. Ele queria organizar algumas coisas, guardar dinheiro para comprar um apartamento no Brasil, e disse que se eu esperasse, ele largaria tudo e se mudaria comigo. Meus olhos brilharam, chorei tanto naquele dia. Vi aquele ato como um pedido de casamento mesmo.

E por isso falo que foi amor à primeira vista. Ele realmente largou tudo para começar um relacionamento comigo. Terminou o casamento dele, mas foi algo amigável, tanto que a ex-mulher dele fala com a gente até hoje. Ele mesmo diz que o ajudei a ser ele mesmo. Também deixou o emprego dele e, dentro deste período que pediu, nós viemos para o Brasil algumas vezes, ficamos alguns meses, para ele conhecer minha família, as pessoas, a comida e a cultura. Ele amou a caipirinha, a feijoada, o carnaval. Hoje diz que se sente mais brasileiro, apesar do sotaque ainda ser um pouco carregado.

Depois de um ano, nos mudamos para o Brasil. Ele veio como turista, mas sempre ficou regular no país. Até que em 1993, nós estávamos sem dinheiro e ele ficou um período de forma ilegal. Cheguei a comentar isso com uma pessoa que acabou nos denunciando para a Polícia Federal. Um dia ele, que estava trabalhando como professor, me ligou e avisou que estava sendo preso. Fui com um advogado tentar tirá-lo, mas como não éramos casados, nem o casamento homoafetivo era aceito, e eu não era uma mulher, nada foi feito. Ele tinha sete dias para sair do país. Cheguei a falar que estava com ele há cinco anos, que tínhamos uma vida, uma união estável, mas a delegada era irredutível. Dizia que era a lei e que a gente não podia fazer nada.

Nós chegamos em casa, nos sentamos na nossa cama e choramos. Planejamos fugas, esconderijos, tínhamos amigos que tinham fazendas e chácaras podíamos ir para uma delas. Uma coisa era certa: não iriamos desistir e nem nos separar. Sempre estudei muito e sabia que não podia ter qualquer tipo de discriminação no país, então fizemos textos relatando o que estávamos passando em três línguas: inglês, espanhol e português, e mandamos para os grandes jornais do mundo. “Polícia Federal discrimina casal gay”. Fomos manchetes no mundo e nos principais jornais do Brasil.

Uma dessas reportagens falava que o David só podia ficar no país se ele se casasse com uma mulher, tivesse um filho ou aplicasse 300 mil dólares. Minha mãe viu essa reportagem e pensou que ela não podia ter filhos e não tinha esse dinheiro, mas era uma mulher. Ela me ligou no dia seguinte e disse que se casaria com David. Ela, infelizmente, já faleceu, mas era incrível, dizia que o David era o melhor genro que tinha e o considerava como um filho mesmo.

Nesse período a minha casa já havia virado um estúdio de fotografia. Nossa história estava sendo contada em todos os lugares, incluindo a decisão da minha mãe. Naquela mesma semana chegou um fax da delegada dizendo que se a minha mãe se casasse com o David, nós três seríamos presos.

Ficamos meses nesse empasse. Entramos com ação na Justiça, até o embaixador da Inglaterra no Brasil entrou no meio e conseguimos achar um jeito de ele ficar no Brasil de forma regular: trabalhando. David sabia ler e escrever muito bem em português. E então o contrataram para fazer um trabalho para o Governo Federal na área do HIV/Aids como tradutor.

Nossos inimigos devem ter falado: a bicha é de sorte. Além de ficar com o marido, ainda conseguiu um emprego para ele. E a partir de então, nós começamos a lutar e a trabalhar pelos nossos direitos em toda e qualquer área da vida. Porque ele era a minha família e não poderia sequer pensar em perdê-lo.

Fomos o primeiro casal do mesmo sexo a se casar no Paraná e um dos primeiros do Brasil a registrar uma união estável no cartório. O que também foi uma luta. A decisão do Supremo Tribunal Federal saiu em uma quinta-feira, neste dia pedi David em casamento. Passamos o final de semana preparando os documentos e o que faríamos. Na segunda, pela manhã fomos até o cartório, percorremos quatro ao todo, e ninguém aceitou fazer. Não sei se por discriminação ou porque não sabiam que já podia, mas ninguém quis.

Então juntamos forças. Contratamos um advogado, alguns colegas de ONG, vereadores e fomos juntos para um cartório. Dali sairia casado com o meu marido no papel. E deu certo, nós assinamos. Naquele momento, só estava me concentrando em assinar no lugar certo. Era um sentimento de vitória. Só queria o direito de ser feliz como qualquer outra pessoa e finalmente estava conseguindo. Não queria destruir a família de ninguém, não queria transformar ninguém em gay. Apenas queria que as pessoas se tornassem mais respeitosas, em cada realidade.

Nós fomos também o primeiro casal a conseguir uma adoção pelo Supremo Tribunal Federal. Foram sete anos ao todo — casais héteros conseguem em torno de um ano. Primeiro veio uma sentença de que poderíamos adotar apenas meninas e acima dos 12 anos, fomos dormir felizes, de que tínhamos conseguido, mas na manhã seguinte já acordei achando aquilo discriminatório, porque não meninos e porque não abaixo de 12 anos? Recorremos, ganhamos. O Ministério Público embargou. Fomos para a segunda instância, Superior Tribunal de Justiça (STJ) e por fim Supremo Tribunal Federal (STF). Conseguimos a adoção. Adotamos três crianças — uma menina e dois meninos.

E então começaram outros desafios. Na reunião de pais e mestres, as escolas não estavam preparadas para dois pais e então fomos fazer palestras. Eles ouviram de outros amiguinhos que tinham religião e quiseram ter também. Nós havíamos chegado à conclusão de que eles podiam ter, se assim quisessem, uma religião depois dos 18 anos. Eu, por exemplo, sou católico e o David, anglicano.

Eles decidiram que seriam católicos. Fomos buscar um padre em quatro paróquias diferentes e recebemos nãos em todas. Era barrado na secretaria. Eles falavam: “e sua mulher?” Quando dizia que era um homem, fechavam o rosto e me dispensavam. Fui conversar com o arcebispo de Curitiba e falei que se ele não batizasse as crianças, iria até o Vaticano. Ele pegou o telefone dele, telefonou para o padre da catedral de Curitiba e conseguimos realizar o batismo dos meninos. Foi uma cerimônia lindíssima, mas já estava pronto para falar com o papa. Até mandamos o vídeo que fizemos do batizado para o Vaticano e recebi uma carta do papa nos parabenizando e dizendo “felicidades divinas a você e a sua família”.

Ver tudo o que nós passamos, e o que conseguimos conquistar nos deixa muito orgulhosos. Sempre fomos muito convictos de que temos direitos iguais a qualquer outro ser humano. Nós temos que ter um princípio e lutar por ele. Parece aquelas conversas de autoajuda, mas é verdade. Não podemos desistir, temos que enfrentar o inimigo. Sou igual em direito do hétero, por exemplo. E se me discriminar por isso, vou ao Supremo Tribunal Federal, até ao papa. A Constituição está ao lado da nossa cama e a seguimos em tudo. Ela diz: ‘Todos são iguais perante a lei’. E alguém me diz que não somos? Somos, sim. Quando você abre sua cabeça e enxerga seus direitos, não existe pastor, padre ou vovó, você tem o direito de ser o que é. E isso eu tenho bem claro.

Anos depois, quando Bolsonaro ganhou a presidência, em 2018, nós ficamos com medo de nossos direitos serem extintos, com receio pela nossa própria vida e quase nos mudamos de país — como tenho cidadania britânica, iriamos nos mudar para Londres, mas não o fizemos. Pelo contrário, decidimos seguir a resolução da Constituição e transformar nossa união estável em casamento. Nos casamos no civil, trocamos de nome, nos casamos na igreja, bem tradicionais e seguindo o ritual.

Uma prova de que gostamos de seguir os rituais é que no dia 29 de março vamos fazer uma festa para comemorar as nossas Bodas de Coral. Vamos dançar Mamma Mia, estamos fazendo aula de dança para isso. E renovaremos nossos votos. Mostrando que nosso amor continua, persiste e resiste ao tempo.

Não existe um segredo para uma relação duradoura, mas estou com ele por interesse. No significado mais genuíno da palavra. Ele é interessante, ele me complementa. Faço as coisas que ele gosta, e ele faz as minhas — nem sempre, mas a gente chega num acordo.

Eu o admiro e isso só cresce com o passar do tempo. Há 35 anos acordo com um café na cama especial para mim. Nós cuidamos um do outro e isso, com mais de 60 anos nas costas, é muito importante. Vamos para a academia e nutricionista juntos, tomamos nossas vitaminas e whey protein, temos cuidado cada vez mais da nossa saúde. Depois de uma vida inteira para o coletivo, vamos focar um pouco no nosso individual também. Ele, em todos esses anos, nunca me magoou, nunca levantou a voz para mim ou vice-versa. Ninguém é perfeito, temos defeitos, e nem tudo é mil maravilhas, mas até isso nós conseguimos contornar e transformar em qualidade.”Fonte: O Globo