Ator, cantor, ativista e cheio de sonhos e desejos de mudanças. Estas são algumas das múltiplas habilidades e afirmações do cantor Lui, que lançou este mês o álbum: “Eu sou o amor”, com nove canções e parcerias com estrelas da música brasileira, como Pugah, Dan Vasco , Bemti ,Ludmila Anjos e Hiram . E em meio a esse turbilhão, ele arrumou um tempo para conversar com o Dois Terços sobre o lançamento do álbum, parcerias, conquistas e a luta contra a sorofobia. Confira abaixo a entrevista na íntegra:
Dois Terços: No recém-lançado álbum “Eu Sou Amor” você reuniu feats com Hiran, Ludmillah Anjos, Dan Vasco (grupo Filhos de Jorge), Pugah e do cantor mineiro Bemti. Como nasceram esses encontros?
Lui: Cada encontro tem seu encanto e um aproximação diferente. Certamente o que une todo mundo na constelação que é o álbum “Eu sou o amor”, é o fato de pertencerem a comunidade LGBTQIAP+. Desde o início, quis que comigo estivessem pessoas que se afirmam sob esse prisma, afinal é preciso alinhar discurso e prática, isso é a política real. Falando de cada pessoa… Hiran é de Alagoinhas e Ìyàwó recente que nem eu – nosso encontro se deu antes mesmo que pensasse em mergulhar na música, é como se nosso Enredo tivesse sido previamente planejado pela ancestralidade, não à toa a canção leva esse título. Tal qual um irmão, ele me abraçou nesse caminhar, assim como Pugah que antes mesmo de qualquer encontro real entre nós, chegou junto na composição de Comigo Ninguém Pode. Mestre como ele é, pouco a pouco foi me provocando, partilhando seu saber, até que quando eu lhe apresentei a letra de Agô e rapidamente ele disse que queria fazer junto! Dan, eu o acompanhava dos shows do grupo Filhos de Jorge, lá no Carmo; com a pandemia me aproximei mais dele observando suas lives e posicionamentos na afirmação da homoafetividade. Quando Marcelo Quintanilha me presenteou com a canção Positivo, fiquei pensando “quem na Bahia poderia somar para segurar o discurso trazido na letra?” e rapidamente ele brilhou em meu juízo, assim como no de Fred Soares (meu diretor artístico), que o conhecia e fez a ponte. Resultado: a gente se achou para não mais de perder! Lud-j e Bemti são dois presentes que a música me deu, me encontrando a seguir no caminho de afirmando da vida e do afeto, misturando protesto e poesia. Ela, eu já havia curtido bastante em shows aqui em Salvador; ele, eu ouvia muito. Quando ambos toparam ecoar amor comigo no álbum, eu quase pirei, afinal de contas não é tão fácil encontrar artistas efetivamente sensíveis a pauta LGBTQIAP+ e que queiram discutir a sorofobia. São cinco artistas que aliam afeto e responsabilidade social, fazendo de sua arte veículo para transformação de mundos – nos enxergamos como em espelho e por isso nos juntamos: para ecoar amor!
DT: No show de lançamento do álbum “Eu sou amor”, no Pelourinho, você falou da importância da luta contra a sorofobia, e a importância de acreditar que a vida não acaba com a descoberta do vírus. Qual a importância dessa fala?
Lui: É mais que urgente a discussão do HIV em nossa sociedade. São 40 anos de epidemia e ainda vivemos sob o prisma de estigmas e preconceitos oriundos da década de 80 e 90, a exemplo da ideia homofóbica de que os corpos gays constituem um suposto grupo de risco para tal (há tempos a medicina já não aponta essa reflexão). Muito se avançou ao longo dessas quatro décadas e pouco de fala sobre. Não cabe mais associar o diagnóstico positivo a uma sentença de morte. Os tratamentos hoje possibilitam que pessoas vivendo com HIV tenham uma vida saudável, tal qual alguém com uma doença crônica. Fazendo uso devido da medicação – que é disponibilizada gratuitamente pelo SUS -, após um tempo a pessoa torna-se indetectável e portanto não mais transmite o vírus. Os modos de prevenção também evoluíram indo além da camisinha, temos a PeP, o PreP… uma rede de ações que efetivam uma prevenção combinada. Essas informações precisam circular, porque a epidemia atravessa a todos/as nós, independente da sorologia, pois são os/as nossos/as pares que estão sendo contaminados/as e, em muitos casos, morrendo… Por culpa, medo, vergonha de buscar o tratamento, de pedir ajuda. O impacto social é tão mais danoso do que o biológico no caso do HIV. Por isso, acredito que é tarefa nossa discutir mais e mais sobre a questão, pautar essa conversa em nossas famílias, entre os/as nossos/as amigos/as, nas escolas e universidades, nos espaços de trabalho, nos lugares de entretenimento e diversão… em todos os cantos e aos muitos ventos. A informação salva vidas e combate o estigma!
DT: No final do show você não segurou a emoção por alguns momentos, mas o público esteve colado o tempo todo com você. Tem como descrever tanta emoção?
Lui: Sabe o que é, eu fui negado em muitas situações da vida. Me disseram que eu não podia cantar, ser artista (que não levava jeito, não tinha talento). Me disseram que eu não poderia amar e constituir família, por ser gay. Me disseram que eu não poderia viver, porque o estigma me estampava a morte como saída. E de repente, naquela noite, que eu não quero nunca esquecer, eu estava ali brilhando, me afirmando em tudo que sou, ecoando amor com tantas pessoas que mesmo na iminência da chuva se arriscaram a ser juntas comigo. Gente que cantava minhas músicas, se divertia com o repertório montado, se reconhecia no som de afirmação que eu entoava. Tentei controlar a emoção diante de todo aquele acontecimento até o momento em que cantando a música “É foda” tudo veio a tona no juízo e desabei. A gente é muito castigado/a pelo sistema cisbrancoheteronormativo que há mais de cinco séculos nos coloniza. Reconhecer o quanto somos foda diante de tudo é uma conquista diária e naquele momento, entoar isso foi forte por demais. Meu eu-coletivo gritava por dentro e meu corpo explodiu de emoção.
DT: Como foi o processo de construção deste álbum, e a seleção das nove canções?
Lui: Inicialmente seriam três músicas apenas, depois viraram cinco canções para dar um contorno melhor de EP, e ao final, decidimos que seria um álbum com nove faixas. Foram mais de noves meses de gestação e tudo tornou-se o que é graças a direção artística de Fred Soares e a produção musical de Bruno Michel. Entre a ideia e o que hoje ecoa nas plataformas e rádios, existe um longo caminho de experimentação, maturação, discussão. Eu comecei a desenhar o projeto ainda no final do ano passado, quando o inscrevi para um dos editais da Lei Aldir Blanc Bahia. Uma vez aprovado, comecei a trabalhar na composição efetiva da equipe e foi quando Fred e Bruno se aliaram a mim. Daí em diante, entrei no processo de composição quando ainda estava no roncó, em meio a meu processo iniciático. Foi no terreiro que me vieram os primeiros versos e músicas. Aos poucos fomos pensando nas participações, entramos em estúdio para gravar, começamos a gravar clipes, negociamos a canção do Cazuza, nos aproximamos de Quintanilha… E no meio dessa gira a Candyall chegou para aprumar o caminho, organizando o que já estávamos produzindo a todo vapor. Mergulhamos, então, com mais profundidade no processo alinhando nossas ideias e invenções ao modo como o mercado fonográfico age atualmente. Resultado disso é o álbum que chega ao mundo com minha cara, minhas reflexões e posicionamentos diante de tudo que atravessa a minha vida, assim como a dos meus e das minhas.
DT: Empoderamento das mulheres, a luta da comunidade LGBTQIA+, HIV, amor e religião estão presentes no seu trabalho. Como você tem percebido a recepção do público?
Lui: Gosto de pensar que o álbum é uma grande convocatória para que as pessoas digam sem medo, vergonha ou culpa “Eu sou o amor” de modo a afirmar o afeto que lhe move no mundo. Acredito que nossa revolução precisa ser afetiva para tornar-se efetiva! E como isso trago no meu som aquilo que atravessa meu existir, canto o que me mobiliza nos enfrentamentos cotidianos, pauto o que é urgente na efetivação de um mundo mais possível para mim e para os/as meus/minhas. Percebo que tudo isso tem chegado efetivamente nas pessoas. Desde que as músicas começaram a ser lançadas em maio deste ano, foram me chegando retornos preciosíssimos, dos aspectos artísticos, musicais, estéticos, até a partilha de subjetividades. O clipe Positivo (que traz uma série de pessoas que nos enviaram vídeos partilhando o que em seus cotidianos lhes positiva na vida), estampa bastante essa recepção das pessoas ao que venho cantando. Fato é que a gente precisa construir as nossas referências. E em alguma medida, começo a contribuir com tal referencial no sentido de combater estigmas e preconceitos relacionados a LGBTfobia e a sorofobia, especialmente; despertando nas pessoas a coragem para legitimação de si, da vida e dos afetos. Tudo isso com “apuro artístico, implicação, mesclando posicionamentos político e social com poesia e encanto” – como me foi dito por algumas pessoas ao final do show assim como após ouvirem o álbum pela primeira vez.
DT: Como nasceu essa parceria com o selo da Candyall Music?
Lui: Houve um alinhamento de interesses e caminhos muito singular. Estávamos nós mergulhados na criação do álbum, buscando uma distribuidora que pudesse ser de fato parceria, que se mobilizasse a difundir o conteúdo que estávamos produzindo, que se afetasse pelo que pretendíamos ecoar. Do outro lado, a Candyall tava começando a se erguer, buscando artistas que quisessem construir um caminho junto, que tivessem uma presença forte da musicalidade brasileira, e que trouxessem consigo um discurso legítimo alinhado a nosso contexto atual. Já na primeira apresentação do projeto, a equipe da Candyall liderada por Carlinhos Brown se interessou e daí em diante começamos a construir uma relação que vai além da distribuição dos conteúdos nas plataformas de streaming musical. Discutimos as tendências do mercado fonográfico, traçamos planejamento estratégico, passamos a desenhar um plano de gestão de carreira selado com o lançamento do álbum após os 4 singles previamente lançados. Agora é ecoar mais e mais “Eu sou o amor” e preparar para o próximo mergulho!