Por Carlos Leal
Engana-se quem imagina que a efervescência LGBTQIAPN+ no Carnaval de Salvador é fato recente, difundido principalmente a partir dos anos 90, com o sucesso do Camarote da cantora Daniela Mercury a partir de 1996 e o concorrido Beco da Boate Off Club, quando o Carnaval de Salvador começou a “invadir” a orla do bairro da Barra. Vale lembrar que mesmo antes anterior a essa fase, a artista Divina Valéria foi musa do Bloco Jacu, que desfilava no carnaval do centro de Salvador, por 12 anos – mas essa história fica para depois. Poucos também conhecem e tem um fato que merece ainda ser estudado: o sucesso das cantoras do Rádio de Salvador, especificamente entre o final dos anos 40 e nos anos 50 quando, no Rio de Janeiro, cantoras como Elza Soares, Emilinha Borba, Elizeth Cardoso e Ângela Maria brilhavam nos programas de rádios Nacional e Mayrink Veiga.
Em Salvador, no final dos anos 40 brilhavam nos palcos de boates como Anjo Azul e Tabaris, no Centro da cidade, e no Carnaval baiano, artistas como Claudete Macêdo, Inalva Luna, Myrian Tereza e Elizabeth Silva, esta, a mais ousada delas. Todas começaram cantando em boates, festas de rua e até serviço de alto falante, como foi o caso de Claudete Macêdo até a popularização das rádios nos anos 50, quando tornaram-se mais conhecidas.
Elizabete Silva era uma artista negra, carismática e com um sorriso que encantava a todos, além de ser uma excelente cantora, que sabia como dominar o palco e conduzir o público. Mesmo antes do sucesso nas rádios, ela já era sucesso nas boates baianas, enfrentando todo tipo de descriminação possível. Em entrevista a Raimundo Dalvo da Costa Silva pra a tese de mestrado Cotidiano, Memória e Tensões: a Trajetória Artística das Cantoras de Rádio de Salvador de 1950 a 1964, Elizabete conta que também gostava de frequentar as boates, sair com amigos, não apenas ir para cantar e isso a levava a enfrentar todo tipo de preconceito possível. Ela conta que certa vez foi convidada a se retirar da boate Anjo Azul, na Rua Chile, que tinha um público considerado de classe média elevada. Recebeu um recado direto: “prefiro que você não volte aqui, os clientes estão reclamando”. Motivo? Elizabete cantava na Boate Tabaris, que a elite da Anjo Azul chamava de “brega”.
Sendo negra e cantora do “brega” Elizabeth, que levava alegria para seu público, vivia uma história que contrastava com dificuldades e preconceito. Outra história fazia de Elizabeth uma mulher “não recomendada à socidade”: a artista era conhecida no meio artístico por desfilar durante o carnaval em carros alegóricos com trajes não muito compostos para a época. Os homens enlouqueciam, as mulheres torciam o nariz e o público LGBTQIAPN+ se deliciava.
“Meu fã clube era o mais animado da Bahia: a maioria das “bichas” eram para mim. Eu adorava, eram pessoas que eu sentia sinceridade no sentimento, me seguiam, aplaudiam. Eu fazia desfile com elas no Tabaris mesmo fora do período carnavalesco. Tinha uma travesti chamada Carlam e vários outros que não lembro nome, que me ajudavam nesses eventos. Carlam era uma travesti linda e também vivia disso, da noite”, contou a Elisabete.
O historiador Jheová de Carvalho relembra a história de outra travesti chamada Floripedes. Era da paz, calma, não agredia nem mexia com ninguém, mas sabia se defender muito bem. Era capoeirista e usava a navalha igual fazia Madame Satã no Rio de Janeiro. Era um carnavalesco pacifico, também fã de Elizabete, e adorava passear na Rua Chile com suas roupas vistosas, se dizendo artista. A travesti veio a falecer assassinada nos anos 80 após roubar o lanche de rapaz para quem se insinuou no bairro da Barroquinha. Um fato curioso, segundo Jheová, é que anos depois, o assassino foi visto com trajes vistosos e femininos e se declarava “Flortipedes 2”.
Claudete Macedo era outra que a comunidade LGBTQIAPN+ venerava. Era o tipo de cantora que afrontava. Se subisse no palco antes dos homens em algum baile, dificilmente alguém faria sucesso naquela noite. Assim, os homens diziam “Quem é primeiro? Claudete? Assim não canto. Assim, Claudete passou a ser sempre a atração principal dos bailes”. Nas ruas, Claudete que nunca teve preconceito e começou cantando até em serviço de alto falante de bairro, era venerada pelo público gay, onde Claudete se apresentava, lá estavam eles. Viva nossa ancestralidade musical. Viva Elizabeth Silva, Myrian Tereza, Claudete Macedo e não esquecendo Laurinha Arantes, que veio bem depois, já na fase do Trio Elétrico, mas que marcou o início de uma nova geração.
FONTES: Acervo pessoal
Raimundo Dalvo da Costa Silva – Cotidiano, Memória e Tensões: a Trajetória Artística das Cantoras de Rádio de Salvador de 1950 a 1964 (Pontificia Universidade e São Paulo – Mestrado em História Social)
Jheová de Carvalho. A cidade que não dorme: crônicas noturnas de São Salvador da – Bahia. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1994.
Carlos Leal -Jornalista formado pela Universidade Tiradentes, Especialista em Marketing Digital, autor do livro infanto-juvenil Histórias de Dona Miúda: a Raínha do Forró (Ed.Pinaúna), co-autor do livro Cem Anos de Dorival Caymmi: panoramas diversos, em parceria com a Professora Dra. Marilda Santanna. Atualmente colabora com artigos e textos para O Dois Terços e para o jornal A Tarde e escreve duas biografias: da cantora alagoana Clemilda e da sambista baiana Claudete Macêdo.