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 Brasil avança no combate ao HIV, mas desigualdades regionais ainda desafiam a prevenção

Genilson Coutinho,
17/12/2025 | 11h12

Dados do DataSUS analisados pela plataforma Techtrials mostram disparidades regionais, enquanto o SUS consolida avanços históricos no diagnóstico, tratamento e prevenção

O Brasil chega ao Dezembro Vermelho de 2025 com avanços expressivos no enfrentamento ao HIV, mas ainda convive com desafios estruturais que impedem o controle pleno da epidemia. Informações recentes do Ministério da Saúde, com base em boletins epidemiológicos e nas bases do DataSUS, somadas a análises dos dados disponíveis, indicam que o país evoluiu no diagnóstico precoce, no tratamento e na prevenção, ao mesmo tempo em que mantém desigualdades regionais persistentes e barreiras relacionadas ao estigma e ao acesso aos serviços de saúde.

Um dos principais marcos recentes foi o reconhecimento, pelo Ministério da saúde, de que o Brasil atingiu critérios internacionais para a eliminação da transmissão vertical do HIV como problema de saúde pública, mantendo taxas inferiores a 2% e incidência menor que 0,5 caso por mil nascidos vivos. O resultado é atribuído a políticas consolidadas do Sistema Único de Saúde, como a ampliação do pré-natal, a testagem universal e o acesso gratuito à terapia antirretroviral.

“Esse é um dos maiores exemplos de como políticas públicas consistentes e continuadas funcionam. A eliminação da transmissão vertical como problema de saúde pública mostra a força do SUS quando há acesso, vínculo com a atenção básica e cuidado integral, mas vitórias como esta precisam de vigilância e políticas de saúde constantes, para que não retrocedam”, afirma o infectologista Márcio de Figueiredo Fernandes, especialista em doenças infecto-parasitárias.

Nos últimos anos, o país também ampliou de forma significativa o acesso ao diagnóstico. A descentralização da testagem rápida para clínicas da família e unidades básicas permitiu que o exame deixasse de ser restrito a centros especializados. Atualmente, é possível realizar testagem simultânea para HIV, sífilis e hepatites virais, com resultados em cerca de 30 minutos.

“Hoje, em muitos serviços, a pessoa se testa e já recebe encaminhamento ou até inicia o tratamento no mesmo dia. Isso reduz o tempo de circulação do vírus e melhora muito o prognóstico individual”, explica Fernandes.

A incorporação dos testes de quarta geração, que detectam anticorpos e proteínas virais mais precocemente, também contribuiu para a redução do diagnóstico tardio. A mudança diminuiu a chamada janela imunológica e favoreceu o início rápido da terapia antirretroviral.

No campo do tratamento, o SUS oferece atualmente seis classes de antirretrovirais e 36 apresentações farmacêuticas, permitindo esquemas individualizados e regimes simplificados, como comprimidos únicos diários para pacientes com carga viral controlada. Esse cenário consolidou o conceito de Indetectável é igual a Intransmissível, segundo o qual pessoas vivendo com HIV em tratamento contínuo não transmitem o vírus por via sexual.

“O tratamento hoje não é apenas uma estratégia individual, mas também coletiva. Uma pessoa com carga viral indetectável vive bem, com qualidade de vida, e não transmite o HIV. Isso muda completamente a lógica da epidemia”, destaca o médico.

Apesar dos avanços, o panorama regional revela desigualdades importantes. Dados do DataSUS, analisados pela plataforma de saúde populacional Techtrials, mostram que, embora o Sudeste concentra o maior número absoluto de pessoas vivendo com HIV, é a Região Sul que apresenta a maior prevalência, com cerca de 906 casos por 100 mil habitantes, segundo dados consolidados do DataSUS até 2023, bem acima da média nacional, estimada em 581 por 100 mil habitantes no mesmo período.

“A análise dos dados evidencia que o HIV permanece como um desafio estrutural de saúde pública no Brasil. Esse padrão se mantém ao longo dos anos e se intensifica a partir de 2020, no período pós-pandemia,, aponta a Techtrials, em nota técnica baseada na série histórica do DataSUS.

Segundo a plataforma, o Nordeste, apesar de registrar números absolutos elevados, apresenta a menor prevalência relativa, o que pode indicar diferenças no acesso ao diagnóstico, na organização dos serviços de saúde e até na subnotificação.

“Essas disparidades reforçam a necessidade de estratégias regionais de prevenção e testagem, com fortalecimento da atenção básica e ações direcionadas para populações mais vulneráveis”, destaca a Techtrials.

Para especialistas, o estigma ainda é um dos principais entraves para o controle da epidemia no país. Populações como homens gays, pessoas trans, jovens e pessoas negras continuam enfrentando barreiras simbólicas e institucionais para acessar a testagem, a prevenção e o tratamento, seja pelo medo do julgamento, seja por experiências prévias de discriminação nos serviços de saúde.

“O estigma ainda produz silêncio, atraso no diagnóstico e abandono do cuidado. Quando a busca por testagem, PrEP ou tratamento é associada a comportamento moral, afastamos justamente quem mais precisa dessas políticas”, alerta Márcio Fernandes.

Esse cenário se agrava em um país de dimensões continentais, onde as realidades regionais são muito distintas. Em áreas com maior prevalência, como o Sul, a percepção de risco nem sempre acompanha os indicadores epidemiológicos, enquanto em regiões com menor prevalência relativa, como o Nordeste, o acesso desigual ao diagnóstico pode mascarar a real dimensão do problema.

“A leitura dos dados precisa ir além dos números absolutos. É fundamental entender como fatores sociais, raciais e territoriais influenciam o acesso ao cuidado e a visibilidade da epidemia”, destaca a Techtrials, ao analisar a base do DataSUS.

Outro desafio é a sustentabilidade das inovações tecnológicas. Medicamentos de longa duração, como os antirretrovirais injetáveis para prevenção e tratamento, representam um avanço significativo, especialmente para pessoas que têm dificuldade de aderir ao uso diário de comprimidos. No entanto, o alto custo dessas tecnologias e a necessidade de profissionais capacitados ainda limitam sua incorporação em larga escala no SUS.

“Essas novas estratégias têm um enorme potencial de impacto populacional, mas precisam ser pensadas dentro de uma lógica de equidade e viabilidade. Caso contrário, corremos o risco de criar uma prevenção de ponta acessível apenas a uma parcela da população”, avalia Fernandes.

Para o especialista, o próximo passo do Brasil no enfrentamento ao HIV passa menos pela falta de conhecimento científico e mais pela capacidade de transformar esse conhecimento em políticas públicas sensíveis às desigualdades.

“O país já mostrou que sabe fazer. Agora, o desafio é customizar as estratégias, fortalecer a atenção básica, investir em educação sexual e enfrentar o estigma de forma direta. O combate ao HIV não é apenas biomédico, é social”, afirma.

No Dezembro Vermelho, a combinação entre avanços históricos do SUS e a leitura crítica dos dados epidemiológicos reforça uma mensagem central: o HIV deixou de ser uma sentença de morte, mas continua sendo um espelho das desigualdades brasileiras. Superar a epidemia exige não apenas medicamentos eficazes, mas também políticas públicas sustentáveis, informação qualificada e um compromisso contínuo com a dignidade e o acesso universal à saúde.