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“As infecções por HIV passaram de 3.500 por dia para 5.800 desde janeiro”, afirma Winnie Byanyima, do Unaids

Genilson Coutinho,
04/07/2025 | 17h07
Winnie Byanyima, diretora executiva de ONUSida, o passado terça-feira na cúpula da ONU em Sevilha. (Foto: Alejandro Ruesga)

“A falta de financiamento na luta contra o HIV é letal”, afirma sem rodeios Winnie Byanyima (Mbarara, Uganda, 66 anos), diretora executiva do Unaids. Ela participou da cúpula da ONU realizada em Sevilha para exigir mais investimentos na saúde global e denunciar os efeitos da retirada de fundos pelos Estados Unidos. “Poderíamos ter 6,6 milhões de novas infecções adicionais até 2029”, alertou Byanyima. Mas o problema, segundo ela, não se resume à arrecadação de fundos: é necessário reformar o sistema, por meio de uma reestruturação tributária e aumento de impostos para os super ricos, para que os países possam gerar recursos internos suficientes e assim financiar sua saúde, educação e serviços básicos.

Como os cortes na saúde global, especialmente os ordenados pelo governo de Donald Trump, estão afetando a resposta ao HIV?

Há tempos observamos uma queda no financiamento da saúde global. Mas o corte súbito da ajuda dos EUA foi inesperado e causou uma disrupção gravíssima na resposta ao HIV e em outras intervenções de saúde. No campo do HIV, 73% de toda a ajuda externa vinha de um único país: os Estados Unidos. O impacto foi devastador, especialmente nos países com alta carga viral. A maioria está na África e já enfrenta um enorme endividamento. Muitos destinam quatro ou cinco vezes mais dinheiro para pagar dívidas do que para a saúde — além de lidar com secas, inundações e outras consequências da crise climática.

Em que esses cortes se traduziram, na prática?

Clínicas foram fechadas, houve demissões em massa de profissionais de saúde… Na semana passada, estive na África visitando centros que atendem pessoas vivendo com HIV. Em Soweto (África do Sul), por exemplo, visitei uma clínica voltada para homens e a equipe me disse: “Os pacientes já não vêm mais. Antes, tínhamos duas pessoas que iam buscá-los nas aldeias para evitar o estigma que as pessoas vivendo com HIV ainda enfrentam, mas agora essas profissionais foram demitidas”. Em outra clínica para jovens, me contaram que, embora ainda recebam medicamentos, muitos estão vencendo — porque não há mais quem localize os jovens que precisam deles.

Onde está o maior retrocesso?

Na prevenção. Muitos governos priorizaram o tratamento das pessoas vivendo com HIV, mas não têm recursos para a prevenção. Estamos vendo um aumento preocupante de novas infecções. Estimamos que passaram de 3.500 por dia para 5.800 por dia desde janeiro [após a suspensão temporária do PEPFAR, o Plano de Emergência do Presidente dos EUA para o Alívio da Aids]. Se não fecharmos essa lacuna de financiamento — com apoio dos governos afetados ou de outros países —, poderíamos ter 6,6 milhões de novas infecções adicionais até 2029. Só no ano passado, foram registradas 1,3 milhão de novas infecções.

Também haverá mais mortes…

Sim. A falta de recursos na luta contra o HIV é letal. Estimamos que o número de mortes relacionadas ao HIV pode aumentar em 4,2 milhões nos próximos quatro anos. No ano passado, foram cerca de 630 mil mortes.

A IV Conferência Internacional de Financiamento para o Desenvolvimento, realizada em Sevilha, pode ajudar a reverter esse cenário?

Esta não é apenas uma conferência para arrecadar fundos. Precisamos abrir múltiplas vias de financiamento para que os países possam gerar recursos internos suficientes para bancar sua saúde, educação e serviços básicos. De um lado, pedimos que não se retirem os fundos de ajuda existentes — porque salvam vidas. Mas também reconhecemos que o modelo tradicional de ajuda está em crise. Precisamos enfrentar questões estruturais, como a dívida externa.

Como a dívida impacta a luta contra o HIV?

Em 2023, por exemplo, a África recebeu 72 bilhões de dólares em ajuda, mas perdeu 88 bilhões em fluxos financeiros ilícitos, principalmente por evasão fiscal, e pagou 101 bilhões em juros e amortizações da dívida. Ou seja, para cada dólar que entra, dois ou três saem. Se resolvermos a crise da dívida, liberaríamos recursos cruciais para que os países em desenvolvimento cuidem da sua população e produzam seus próprios medicamentos a baixo custo.

Além da dívida, que outras medidas você propõe?

Duas outras. A primeira é a reforma do sistema fiscal internacional. Depois de anos de luta, finalmente há um processo na ONU para negociar uma convenção sobre cooperação tributária global. Essa convenção fecharia as brechas legais que permitem que grandes corporações — especialmente do Norte Global — evitem pagar impostos nos países onde atuam. Se conseguirmos isso, os países em desenvolvimento poderiam arrecadar muito mais. Mas também têm desafios internos nesse campo.

Quais desafios?

Podem aumentar suas receitas cobrando impostos dos mais ricos. Por isso, defendemos uma tributação progressiva. Os bilionários estão pagando apenas 0,3% de todos os impostos, enquanto você e eu pagamos pelo menos 30%.

E a segunda medida?

A questão da propriedade intelectual. Ainda não temos cura nem vacina para o HIV, mas já existem várias ferramentas de prevenção e tratamento. O problema é que, a cada nova tecnologia, é preciso renegociar o preço. No início da epidemia, as regras de propriedade intelectual impostas pelas farmacêuticas custaram a vida de 12 milhões de pessoas, até que o preço dos antirretrovirais caiu de 10 mil dólares para apenas 30 dólares por pessoa ao ano. Não podemos continuar aceitando que a busca por lucro impeça o acesso a tratamentos que salvam vidas.

Está se referindo ao preço do Lenacapavir?

Sim. É um medicamento de prevenção com 99,9% de eficácia, que pode proteger milhões de meninas e mulheres jovens na África e em países em desenvolvimento. Uma injeção a cada seis meses as permite se proteger — especialmente porque muitas não conseguem negociar o uso de preservativos. O mesmo vale para homens gays criminalizados ou profissionais do sexo. A farmacêutica Gilead estabeleceu um preço de 28 mil dólares por pessoa ao ano nos mercados mais ricos, como os EUA. Graças à nossa pressão, a Gilead concedeu licenças a seis empresas para fabricar genéricos. Mas nenhuma está na América Latina, onde as infecções estão aumentando. Na África, apenas uma empresa do Egito tem licença — mas não na África do Sul, onde está o maior problema. Se liberarem licenças para pequenas empresas em cada região, chegaremos mais rápido a preços mais baixos.

Qual poderia ser o preço?

Pesquisadores da Universidade de Liverpool estimam que o Lenacapavir poderia ser produzido por apenas 25 euros por pessoa ao ano, se sua produção genérica e em larga escala fosse autorizada. Mas a Gilead está limitando as licenças e atrasando o processo.

A ampliação do uso do Lenacapavir pode acabar com o HIV?

Acredito que sim. O medicamento tem potencial para ser amplamente distribuído e sua eficácia de 99,9% nos permitiria reduzir rapidamente o número de novas infecções. E, ao interromper as novas infecções, poderemos acabar com a epidemia de aids, porque continuaremos cuidando de quem já vive com HIV, mas não haveria mais pessoas novas infectadas. É uma verdadeira transformação. Em alguns anos, poderíamos estar mais perto do que nunca de eliminar a doença

Da Agência AIDS/ Fonte: El País

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