Ícone do site Dois Terços

Acompanhar transição de gênero de parceiros é desafiador, mas traz aprendizados

Foto: Divulgação

Luiza Artacho, 31, se identifica como uma mulher lésbica. Seu relacionamento estável de seis anos, porém, é com um homem trans.

Ela diz se encaixar em uma categoria pouco conhecida, denominada “homoflexibilidade”, que significa que sua atração se direciona a pessoas do mesmo gênero, mas com uma ocasional flexibilização. Nesse caso, o seu marido.

A médica veterinária conta que, por muito tempo, considerou-se bissexual, até perceber que sua atração por homens era principalmente fruto de pressão social. “Me declarar lésbica é muito importante para mim, inclusive politicamente.”

Quando começaram a namorar, seu parceiro ainda não havia feito a transição de gênero e viviam um relacionamento homossexual. Cerca de dois anos depois, quando o casal já morava junto, o marido começou a se descobrir transexual.

Apesar de querer demonstrar apoio, Luiza afirma que o processo foi desafiador. “Era como estar sendo empurrada de volta para o armário”, diz. Em meio a esse conflito, pondera que nem todas suas atitudes eram as mais acolhedoras, e destaca que foi um processo de redescoberta para o casal.

Além das reflexões sobre a própria sexualidade, Luiza precisou lidar com sensações advindas de experiências anteriores negativas com homens. “A barba, por exemplo, me trazia muitos gatilhos, e costuma ser algo muito importante para homens trans”, pontua.

Outro problema era a falta de oportunidade de compartilhar a experiência com outras pessoas. “Eu não conhecia ninguém que tivesse passado pela mesma situação”, diz Luiza. “Era um privilégio presenciar esse processo ao lado dele, mas foi muito solitário.”

A psicóloga Fe Maidel, especialista em gênero e sexualidade, confirma que o momento traz mudanças em diversos níveis para o casal. “O parceiro transiciona junto”, aponta.

A transição não representa apenas uma mudança de gênero, mas sim de identidade. “Estamos colocando em questionamento toda a nossa existência e papéis sociais”, afirma Maidel. Por isso, é natural que o parceiro também precise refletir sobre si e o que essa nova posição representa em sua vida.

Segundo a especialista, o processo é diferente para cada casal e não é possível prever os resultados. “Tentamos colocar as coisas em espaços pré-definidos, mas cada pessoa e cada sexualidade é única. Ninguém vai ter a mesma experiência que o outro”, diz a especialista.

Para Yasmin Burzin, 29, questionar a própria orientação sexual não foi uma questão, já que se considerava bissexual. Acompanhar a descoberta de sua parceira enquanto uma pessoa não binária, porém, não foi fácil.

“Quando nos conhecemos, Laís Kai já estava nesse processo de questionamento e eu fui informada sobre, então sempre busquei utilizar linguagem sem marcação de gênero”, conta.

A dançarina tinha clareza de que o gênero não influenciaria em sua atração pela pessoa, mas o processo ainda ainda foi difícil. “Foram muitos meses de terapia e diariamente tínhamos conversas e pequenos ajustes.”

Yasmin também relata que teve dificuldade de lidar com a transição porque, em certos momentos, sentia “uma reprodução de masculinidade machista”. Para ela, a transição do parceiro foi exaustiva e complexa, mas também trouxe aprendizados.

“Vivemos numa sociedade muito binária, e eu não tinha noção do quanto esse local de fluidez realmente não é aceito. Tive que estudar muito, fui percebendo como eu também não tinha reflexão sobre algumas coisas”, pondera.

Fernando Gonsevski, 30, também considera que a experiência de acompanhar a transição de um parceiro é marcante. Há mais de dez anos, começou um relacionamento com uma pessoa que se descobriu trans enquanto estavam juntos.

“Desde de sempre ela era um gay muito afeminado, e quando ela decidiu começar a transição de gênero, todos já sentíamos isso”, conta.

Apesar de a decisão não ter sido uma surpresa, para Fernando, o apoio também decorria do medo de como os outros encarariam a transformação. “Acompanhar a transição dela me fez ser mais humano e entender todas essas dores que ela passava e que vinham sempre que a sua identidade como mulher era negada”, diz.

Hoje, Fernando trabalha como orientador socioeducativo no Centro de Acolhida Especial Casarão Brasil para mulheres trans, e considera que acompanhar uma pessoa amada passando por isso trouxe mais sensibilidade.

“Terminamos por motivo de distância, mas continuamos amigos”, relata. “Depois da transição dela, foi todo um trabalho para eu me conhecer mais, me reconhecer. Eu sou um homem gay, mas ali aprendi que eu gostava da pessoa. Não era do órgão dela, ou de como ela aparentava.”

Fonte: Folha de S. Paulo

Sair da versão mobile