A Parada LGBT+ da Bahia e o risco do apagamento de memórias
Por Beatrice Imperial
No próximo dia 14 de setembro de 2025, Salvador recebe a 22ª edição da Parada do Orgulho LGBT+ da Bahia, promovida pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). O tema deste ano, “Envelhecer LGBT+: Memória, Resistência e Futuro”, poderia ser uma oportunidade histórica de reconhecer as trajetórias de quem abriu caminhos em tempos de perseguição e violência. No entanto, a programação revela uma contradição dolorosa: os artistas que foram pioneiros da militância através da arte drag, como Dion Santyago e Bagagerie Spielberg, estão ausentes.
Em vez disso, a estrutura do evento privilegia trios com bandas de pagode que, em muitos casos, não pertencem à comunidade e atraem públicos que sequer se alinham às pautas políticas do movimento — chegando, por vezes, a reproduzir violências contra as próprias pessoas LGBTQIAPN+ que deveriam estar no centro da celebração. A festa, que deveria ser ato de resistência, parece mais um produto de massa esvaziado de sua potência política.
O apagamento como escolha política
A filósofa Joan Scott lembra que a história das minorias é constantemente atravessada por apagamentos institucionais. Paul Ricoeur, em A Memória, a História, o Esquecimento, reforça que há uma responsabilidade ética em manter vivas as memórias que estruturam identidades coletivas. Quando um evento cujo tema é a velhice LGBT+ exclui justamente as figuras que carregam essa memória, não estamos diante de uma falha pontual, mas de uma opção política: transformar um ato político em espetáculo turístico.
Judith Butler já nos ensinou que a resistência queer se constrói pela performatividade dos corpos. Nos anos 1970 e 1980, Dion, Bagagerie e tantas outras artistas encarnaram essa resistência em plena ditadura militar, enfrentando não apenas a repressão do Estado, mas também o estigma do HIV/AIDS e a violência cotidiana. Como falar em “resistência e futuro” sem dar voz a quem arriscou o corpo para que hoje possamos ocupar as ruas com cores e liberdade?
A memória coletiva como patrimônio político
Maurice Halbwachs define a memória como um fenômeno coletivo, sustentado por símbolos, práticas e rituais. A Parada deveria ser justamente um desses marcos sociais de preservação da memória baiana LGBT+. Ao priorizar trios sem ligação orgânica com a comunidade, rompe-se a ponte entre passado e futuro, fragilizando o legado histórico.
Esse apagamento não atinge apenas a memória coletiva, mas também as memórias afetivas de cada indivíduo que envelheceu resistindo. Como construir um discurso sobre o envelhecimento LGBT+ sem reconhecer e valorizar quem enfrentou a marginalização em décadas passadas?
A escolha da madrinha
A nomeação de Léo Áquilla como madrinha da Parada reforça esse movimento de espetacularização. Embora seja uma artista reconhecida nacionalmente, não faltam nomes baianos que poderiam ocupar esse espaço com legitimidade e representatividade. Por que buscar fora o que existe em abundância dentro?
Uma possível resposta está na lógica da espetacularização midiática. Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo, analisa como eventos públicos muitas vezes se organizam em função da visibilidade e não da essência política. Ao escolher uma personalidade midiaticamente conhecida, ainda que distante da realidade baiana, a Parada se alinha a uma lógica de mercado que privilegia a projeção nacional, em detrimento da valorização da comunidade local.
Outro aspecto é a tentativa de captação de recursos e apoios institucionais. Ao convidar nomes de alcance nacional, organizadores podem buscar legitimação política e patrocínios, reforçando um caráter mais turístico do que comunitário para o evento. Nesse sentido, a escolha da madrinha atende a uma estratégia de visibilidade que se aproxima mais do marketing do que da memória.
Há ainda uma dimensão de colonialidade cultural, como descreve Aníbal Quijano: a tendência de valorizar o que vem de fora em detrimento do que é produzido localmente. Nesse caso, ao trazer uma madrinha de outro estado, apaga-se o protagonismo de artistas baianas que já carregam consigo a história e a ancestralidade evocadas pelo tema da Parada.
Judith Butler, ao discutir a performatividade, lembra que os corpos e trajetórias que resistem precisam de espaços de reconhecimento para que a política da memória se concretize. Se o evento não reconhece as drags pioneiras da Bahia como madrinhas naturais desse tema, reforça-se a lógica do apagamento simbólico: quem construiu a luta é colocado à margem, enquanto o espetáculo de nomes “vendáveis” ocupa o centro.
O risco do esvaziamento político
O GGB, fundado em 1980, é uma das mais antigas organizações de defesa dos direitos LGBT+ no Brasil e carrega um histórico inegável de relevância. Porém, ao longo dos anos, parte da comunidade tem percebido um distanciamento entre a instituição e as bases que deveria representar. Essa sensação de afastamento ecoa no que o sociólogo Pierre Bourdieu chamou de “distância simbólica”: quando uma instituição, ao se consolidar, passa a operar mais em função de sua legitimidade perante o poder político e midiático do que em relação às demandas concretas de seus representados.
O risco, portanto, é que a Parada — originalmente concebida como ato político, inspirado nos motins de Stonewall (1969), símbolo mundial de resistência — se transforme em evento turístico-espetacularizado, formatado para atrair números, patrocínios e mídia. O filósofo Guy Debord já apontava que, em contextos capitalistas, até mesmo manifestações críticas são capturadas pelo mercado e ressignificadas como entretenimento.
Esse esvaziamento político não é apenas uma questão estética ou de programação: ele ameaça a própria função social da Parada. Michel Foucault, em suas análises sobre poder e resistência, mostra que a luta de minorias precisa constantemente criar espaços de visibilidade que desafiem a norma. Quando a visibilidade passa a ser mediada por critérios de mercado e turismo, perde-se a dimensão insurgente e radical que fez da Parada um espaço de luta.
Assim, o que deveria ser um ato de contestação pode acabar como parte do calendário turístico de Salvador — uma cidade já conhecida por transformar suas manifestações culturais em produtos de consumo. O problema não está em atrair turistas, mas em reduzir uma manifestação política a espetáculo desprovido de densidade crítica.
Mais do que festa
Não se trata de negar a importância da dimensão festiva. A alegria é, ela mesma, uma forma de resistência. A filósofa Audre Lorde já dizia que o prazer e o erotismo são também instrumentos de luta contra sistemas de opressão. Celebrar a vida, as conquistas e a diversidade em público é afirmar que existimos e que não seremos apagados.
Contudo, a festa sem memória corre o risco de se esvaziar. O historiador Eric Hobsbawm, em A Invenção das Tradições, lembra que toda celebração pública precisa se apoiar em referências simbólicas do passado para dar sentido ao presente. Uma Parada que ignora aqueles e aquelas que abriram caminho deixa de ser uma tradição política para se tornar apenas entretenimento.
A memória coletiva, como defendia Maurice Halbwachs, é um patrimônio social, que depende de rituais e símbolos compartilhados. A Parada é um desses rituais: um espaço onde a memória coletiva da comunidade LGBT+ pode se inscrever no espaço público. Se essa memória é apagada em favor do espetáculo, a própria comunidade perde um dos principais instrumentos de resistência política.
Paul Ricoeur reforça essa ideia ao dizer que a memória tem uma dimensão ética: lembrar é um dever, especialmente quando se trata de grupos historicamente silenciados. Nesse sentido, o envelhecimento LGBT+ só pode ser debatido de forma séria se reconhecermos os corpos que envelheceram resistindo — aqueles que enfrentaram ditaduras, epidemias, preconceito e violência para que hoje possamos dançar nas ruas.
Portanto, a festa é necessária, mas não basta. Uma Parada que celebra sem lembrar falha em sua função histórica. E quando falamos de envelhecimento LGBT+, é imprescindível reconhecer, valorizar e dar voz a quem sobreviveu a tempos muito mais hostis. Sem essa memória, o futuro corre o risco de repetir os apagamentos que juramos combater.
Minha opinião: manifesto final
Como mulher trans, artista e comunicadora, não posso silenciar diante do que vejo: a Parada LGBT+ da Bahia corre o risco de esquecer quem abriu caminhos para que hoje possamos ocupar as ruas. Não se trata apenas de escolhas de programação; trata-se do modo como lidamos com nossa história, nossa memória, nosso futuro.
Cada corpo idoso da comunidade carrega batalhas invisíveis — contra a violência, o preconceito, a exclusão. Ignorar essas trajetórias em um evento que deveria celebrá-las é reafirmar o mesmo apagamento que denunciamos há décadas. A Parada não pode ser só festa; precisa ser ato político, espaço de resistência e memória.
Negar as pioneiras drags da Bahia é negar a raiz política da nossa existência. Transformar resistência em espetáculo, veiculado para turistas e patrocinadores, é dessubstanciar a própria luta. A Parada deve ensinar, honrar e empoderar: lembrar quem veio antes, inspirar quem vem depois.
Sem memória, não há futuro. Sem respeito às nossas pioneiras, a Parada se reduz a vitrine vazia. E festa sem política não nos serve, não nos protege e não nos projeta. Precisamos de uma Parada que conte nossa história inteira — com rugas, cicatrizes e brilhos — e faça da nossa existência uma vitória coletiva.
Por Beatrice Imperial é jornalista e ativista.