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Harley Henriques celebra Medalha de Honra ao Mérito da Alesp e 10 anos do Fundo Positivo

Genilson Coutinho,
27/11/2025 | 23h11

Aos 37 anos de trajetória no enfrentamento ao HIV/Aids, Harley Henriques se prepara para receber a Medalha de Honra ao Mérito da Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) no mesmo período em que o Fundo Positivo completa 10 anos de atuação. O reconhecimento, diz ele, honra uma história coletiva, uma causa construída por mãos que, em grande parte, já não estão mais aqui. Entre memórias dos anos 1980 e 1990, desafios do presente e a urgência de garantir recursos para organizações de todo o país, Harley faz um balanço da luta, do impacto e do que ainda precisa ser construído para que a vida siga sendo defendida com dignidade e solidariedade.

A trajetória de Harley Henriques começa antes mesmo de existir política pública estruturada para HIV/Aids no Brasil. “Sou um ativista no campo do HIV/Aids há 37 anos. Comecei a trabalhar em 1988, quando eu tinha 19 anos de idade”, relembra.

Ao falar sobre a Medalha de Honra ao Mérito da Alesp, a maior honraria do Parlamento paulista, Harley faz questão de afastar qualquer interpretação individualizada. Para ele, o reconhecimento só faz sentido se visto como memória e continuidade de uma luta coletiva.

“Essa honraria é muito mais do que algo individual… é uma causa. É a primeira vez que um ativista no campo do HIV/Aids vai estar recebendo a maior honraria da Assembleia Legislativa de São Paulo. Então, na realidade, é uma honraria à causa do HIV/Aids”, afirma.

Harley lembra que a política de HIV no Brasil foi moldada, profundamente, pela força da sociedade civil. “Se a gente tem hoje uma política farmacológica nesse país — genéricos, quebra de patente, protocolo dos planos de saúde — tudo isso veio pelo trabalho de advocacy do movimento social”, destaca.

Ao mesmo tempo em que recebe o reconhecimento com alegria, ele também confronta a dimensão emocional desse momento.

“Talvez eu seja um dos únicos ativista do movimento HIV/Aids dos anos 80 que segue ainda trabalhando com o tema. Muitos dos meus companheiros se foram precocemente”, diz.

Ele descreve esse sentimento como um misto de vitória e tristeza: “É ocupar essa posição solitária, me dar conta de que muitos se foram num momento onde o estigma era ainda muito forte. Eles viveram situações de morte civil, que é a morte antes da morte biológica. Mas valeu todo esse trabalho. Essa luta foi importante para chegar onde nós chegamos”.

Para Harley, a medalha tem um destino claro. “Quando você pergunta a quem essa medalha é dedicada, vem na minha cabeça, de imediato, meus companheiros e companheiras que estavam comigo nos momentos mais difíceis dos anos 80 e 90, e que se foram”, afirma.

E completa: “Como o movimento negro tem sua ancestralidade, o movimento de Aids também tem a sua”.

Compromisso político com a memória e a vida

A entrega da Medalha de Honra ao Mérito da Alesp será realizada pela deputada estadual Thainara Faria (PT), que incluiu a homenagem na agenda do mandato como um gesto de reconhecimento histórico. Para ela, celebrar Harley Henriques é também celebrar a ancestralidade do movimento de HIV/Aids e as pessoas que abriram os caminhos que o Brasil percorre até hoje.

“A ideia da homenagem nasce do compromisso que o meu mandato tem com a memória e com quem veio antes de nós. Valorizo profundamente todas as pessoas que, no início da epidemia, nos anos 80, enfrentaram estigma, desinformação e negligência para garantir que hoje tivéssemos direitos, tratamento e dignidade. Quando homenageio o Harley Henriques, também reverencio Cazuza, Renato Russo e tantas outras pessoas que abriram o caminho e lutaram por vida”, afirma.

A deputada explica que o tema está presente de forma cotidiana em sua atuação institucional. “No meu mandato, essa pauta é vivida de forma muito próxima porque contamos com pessoas vivendo com HIV na equipe. Isso nos faz compreender, de forma concreta, a importância dessa luta. Homenagear é também reconhecer que o que temos hoje só existe porque outros resistiram antes de nós. Queremos cada vez menos mortes por HIV/Aids e cada vez mais vidas com saúde, acesso à PrEP, à PEP e ao cuidado integral.”

Ao refletir sobre o cenário atual da epidemia, Thainara aponta os desafios estruturais que persistem — especialmente a desigualdade no acesso à prevenção e ao tratamento. “Embora o Brasil seja referência mundial no tratamento, ainda enfrentamos desafios profundos. Um deles é o acesso à PrEP, à PEP e ao próprio tratamento. As regiões mais afetadas pelas mortes são justamente aquelas onde vivem pessoas pobres e negras, que também são as regiões com menor acesso. Chegar nessas pessoas é, hoje, um dos maiores desafios que o país precisa enfrentar”, observa.

Ela destaca ainda o impacto da concentração dos serviços em São Paulo. “Há um problema grave de acesso: muitas pessoas chegam a gastar até duas horas no transporte público para retirar o medicamento ou fazer acompanhamento. É preciso descentralizar esse serviço para que todas as unidades básicas de saúde ofereçam PrEP e PEP, garantindo que a prevenção seja realmente acessível.”

A deputada lembra que seu mandato tem atuado diretamente nessa agenda. “Tenho um assessor que vive com HIV e é um ativista da causa. A partir dessa vivência, realizamos reuniões periódicas com médicos, infectologistas, especialistas e integrantes da comunidade para pensar ações concretas e construir caminhos reais de mudança. Levei esse debate para Brasília, em reunião com o ministro Padilha, para discutir a descentralização da PrEP e da PEP. Mesmo sendo uma responsabilidade muito dependente das gestões municipal e estadual, é essencial mantermos essa pressão política.”

O mandato também destinou emendas ao Fundo Positivo, reforçando a importância da sociedade civil na resposta ao HIV/Aids. “O compromisso é claro: ser um mandato atuante e presente nessa pauta, sempre.”

Uma década de Fundo Positivo: conquistas e desafios

Criado em 2014, o Fundo Positivo nasceu como um fundo temático dedicado à resposta ao HIV/Aids e, ao longo do tempo, ampliou sua atuação para direitos LGBTQIAPN+. A missão segue a mesma: fortalecer organizações da sociedade civil de todo o país por meio de editais públicos, apoio técnico e articulação com financiadores.

“É muito desafiador e, ao mesmo tempo, são muitas conquistas. O Fundo surgiu para trabalhar com HIV e depois ampliou sua missão para os direitos LGBTQIA+. Hoje financia mais de 500 projetos em todo o território nacional”, diz Harley, que lidera a organização desde o início.

Ele se emociona ao lembrar que já esteve no outro lado da equação: “Para mim, que estive na base, e hoje lidero uma organização que existe para fortalecer o movimento, é muito importante. Porque eu vejo que os recursos são cada vez mais escassos”.

O modelo de atuação, segundo ele, busca romper lógicas hierárquicas ainda comuns no financiamento social. “A gente se relaciona com o movimento de forma horizontal. A gente colabora acreditando que somos pares”, diz.

Entre os principais desafios enfrentados em dez anos, Harley é direto: “Captação de recursos. Como somos um fundo independente, não temos um mantenedor exclusivo. Precisamos captar para cumprir nossa missão. E neste cenário, captar recursos é cada vez mais difícil”.

A crise global de financiamento e o papel do Fundo Positivo

A dificuldade de captar não é apenas uma realidade brasileira. O boletim mais recente do Unaids, divulgado na última terça-feira (25), reforça uma crise global de financiamento que ameaça diretamente o trabalho das organizações sociais, especialmente aquelas que atuam em territórios vulnerabilizados.

Ao comentar o cenário, Harley reforça o papel estratégico do Fundo Positivo na mediação entre recursos e comunidades por todo o Brasil.

“O nosso papel é sermos uma ponte. Uma ponte entre fontes financiadoras e a comunidade organizada. Principalmente para levar recursos para organizações de pequeno e médio porte e para áreas remotas do país”, afirma.

A estratégia envolve diversificar as fontes de financiamento e reforçar a filantropia nacional. “Vamos seguir captando recursos internacionais, mas especialmente aqui, na filantropia brasileira. A filantropia brasileira tem uma responsabilidade com o financiamento no país”, diz.

Estigma e desigualdade: desafios que persistem

Apesar dos avanços científicos e das conquistas políticas, o estigma continua sendo um dos obstáculos mais difíceis no enfrentamento ao HIV/Aids. Harley não hesita em chamar o problema pelo nome.

“Uma das cepas do HIV mais difíceis de se atuar é a cepa do estigma. Ela era muito forte no início da epidemia, e ainda existe muito. Não posso dizer que foi eliminada. As pessoas ainda ficam temerosas de assumirem sua identidade de vivendo com HIV”, afirma.

O estigma, diz ele, interfere tanto na prevenção quanto na adesão ao tratamento. E isso se agrava em um contexto de profundas desigualdades sociais, especialmente entre jovens, grupo em que a epidemia tem crescido na América Latina.

“Infelizmente, o acesso está ligado diretamente às desigualdades sociais. É muito complexo estar numa situação em que temos medicamentos, profilaxia… mas vemos jovens descobrindo o HIV já em quadro de Aids, como nos anos 90”, alerta.

E o que vem pela frente?

Ao ser perguntado sobre o que o Fundo pensa para o futuro, Harley responde sem hesitação: “É continuar fazendo o que nós fazemos: o lançamento de editais públicos para financiar a sociedade civil no campo do HIV/Aids”.

Sobre o futuro, ele projeta continuidade e fortalecimento. “Daqui a 10 anos, imagino o Fundo Positivo fortalecido e seguindo com muita coragem e garra, cumprindo seu papel de fortalecimento da sociedade civil”, afirma.

Solidariedade como legado

Ao final da conversa, Harley deixa uma mensagem que ecoa desde os primeiros anos da epidemia e que continua urgente.

“A mensagem é a mesma do início da epidemia: que cada vez mais a gente possa exercitar o sentimento de solidariedade. É um sentimento que vai para além da empatia. É o que movimenta as pessoas a se unirem para podermos viver num mundo com HIV/Aids com qualidade de vida. Porque viver com HIV/Aids significa valorização da vida. E isso só é possível se tivermos acesso, direitos iguais e uma vida sem estigma”, conclui.

DA agência AIDS