A desigualdade é um dos principais fatores a impedir o fim da pandemia de HIV e Aids, destaca Jornal da USP
Dezembro é o mês mundial de luta contra a aids. O período, chamado de Dezembro Vermelho, é repleto de campanhas que destacam a importância da prevenção e combate ao vírus HIV, à aids e às infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Em meio ao tópico, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) publicou um relatório que expõe como as desigualdades atrasam o fim da pandemia causada pela doença.
As desigualdades podem ser notadas sob diversas perspectivas, a prevenção e o tratamento atingem de maneira diferente algumas regiões, assim como determinados grupos sociais, faixa etária e gênero também influenciam. Desse modo, a meta proposta pela Unaids de acabar com a aids até o ano de 2030 parece distante e requer mais esforço e atenção dos países e instituições para que possa ser cumprida.
Angela Carvalho Freitas, médica infectologista do Serviço de Extensão ao Atendimento de Pacientes HIV/Aids (Seap) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, discorre sobre a principal região afetada: “A maior parte dos casos de HIV e aids no mundo acontece na África Subsaariana”. O relatório indica que, em números absolutos, essa é a população mais afetada, muito por conta dos problemas socioeconômicos que assolam a região, onde já é possível notar um primeiro marcador. Conforme o levantamento, os efeitos das desigualdades de gênero nos riscos de HIV das mulheres são especialmente pronunciados no local, visto que representaram 63% das novas infecções por HIV em 2021. Além disso, meninas adolescentes e mulheres jovens, de 15 a 24 anos, têm três vezes mais chances de adquirir o HIV do que adolescentes e homens jovens da mesma faixa etária.
A partir de uma análise dos dados mundiais coletados pela Unaids, a diferença entre diversas regiões do globo fica evidente. Isso também pode ser visto no Boletim Epidemiológico Brasileiro, em que as diferenças entre os Estados e municípios acontecem. De acordo com a médica, existe um impacto muito grande na condição social de acesso e as questões passam por quanto o serviço é oferecido, quando a informação chega e qual é a eficiência da rede de assistência e testagem para a população.
Ela também comenta que as desigualdades no acesso ao tratamento estão associadas a questões culturais, que podem perpetuar o estigma e a discriminação. Além disso, condições socioeconômicas e políticas também influenciam, ou seja, quais políticas de governo são realizadas para tentar controlar a epidemia e como chegam os serviços de saúde e medicamentos à população mais vulnerável.
Outro dado sintomático é que, em 2021, as crianças representavam apenas 4% de todas as pessoas vivendo com HIV, mas 15% de todas as mortes relacionadas à aids. Angela indica: “O grupo dos jovens, crianças e adolescentes marca muito a dificuldade de acesso e a dificuldade dos cuidadores. Existe muita discriminação com a doença e se não houver uma rede de apoio consolidada para que o jovem se sinta seguro e tenha os cuidados necessários, o adoecimento pode acontecer”. As crianças e adolescentes recebem pouco amparo e a estigmatização da doença é um fator que dificulta ainda mais, visto que os jovens podem não se sentir confortáveis com a situação. “Nós temos que investir em mudanças estruturais para reduzir a infecção e a pandemia de HIV e aids no Brasil”, aponta a médica.
A aids é a doença causada pela infecção do Vírus da Imunodeficiência Humana. A infecção pelo HIV pode ser controlada através da remediação diária e é possível que uma pessoa viva com HIV sem transmitir, mantenha sua saúde adequada e tenha uma vida praticamente plena. Angela menciona que o controle é parecido com o das pessoas que vivem com hipertensão arterial sistêmica ou diabete, que utilizam remédios diariamente e recebem acompanhamento médico. “A diferença é que provavelmente o adoecimento para quem não realiza os cuidados necessários é mais rápido.”
Conforme a médica, o adoecimento pela aids acontece quando as pessoas infectadas por HIV recebem o diagnóstico tardio ou não conseguem realizar o tratamento de forma adequada, muitas vezes por falta de acesso ou conscientização acerca do problema. Existem países em que o acesso ao serviço e atendimento de saúde é pago. Desse modo, a população com baixa renda é prejudicada e não recebe a estrutura necessária para ser assegurada. Um meio para contornar essa situação são as doações e a mobilização internacional por meio de investimentos e recursos, caso contrário, alguns países não conseguem fornecer o necessário aos seus pacientes.
Em 2021, 650 mil pessoas morreram devido à doença e 1,5 milhão de pessoas foram contaminadas com o HIV. Angela comenta que houve uma redução em 2020, mas provavelmente por conta da subnotificação, visto que os serviços voltaram grande parte de sua capacidade operacional para a covid-19, o que pode ter gerado uma menor notificação.
A médica ainda aponta que, no ano de 2021, existiu novamente um aumento em alguns países, até mais alto que em 2018 e 2019, mudando a tendência da curva de controle, o que causa muita preocupação e deixa mais distante o sonho de controlar a pandemia de HIV e aids até 2030.
Populações-chave
Existem grupos mais vulneráveis ao vírus HIV, chamados de populações-chave, que apresentam questões comportamentais, sociais e legais que aumentam sua vulnerabilidade à infecção do HIV. Desenvolver estratégias específicas para esses grupos é fundamental para uma resposta eficaz à epidemia de aids.
Travestis, transexuais, gays e outros homens que fazem sexo com homens, profissionais do sexo, pessoas privadas de liberdade e usuários de drogas fazem parte desse grupo. Angela comenta que essas populações são desigualmente afetadas pela epidemia de HIV e que em todos os países existe um porcentual muito acima de infecções por HIV nesses grupos do que no restante da população.
Na sociedade, existe um preconceito estabelecido aos infectados pelo vírus HIV, sobretudo nas populações-chave. Mas, para além dos grupos mais afetados, a médica explica que o olhar deve ser mais balanceado e livre de preconceitos, visto que todos podem ser infectados pelo vírus, também existe um número considerável de incidência em mulheres e homens heterossexuais, gestantes e crianças.
De acordo com a Unaids, a criminalização e a estigmatização das relações entre pessoas do mesmo sexo, do trabalho sexual, da posse e uso de drogas e a discriminação, incluindo na área da saúde, impedem as populações-chave de acessarem os serviços de prevenção do HIV. Além disso, o apoio governamental e os programas comunitários de implementação de prevenção e tratamento do HIV, que fornecem serviços personalizados para cada grupo, são muito pequenos para resultar em uma redução significativa nas novas infecções.
A agência destaca que, em todo o mundo, mais de 68 países ainda criminalizam as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Outra análise presente no relatório constatou que gays e outros homens que fazem sexo com homens que vivem em países africanos, com leis mais repressivas, possuem três vezes menos probabilidade de saber seu status de HIV do que seus colegas que vivem em países com leis menos repressivas.
Existe a perpetuação de um estigma que acaba dificultando muito as políticas de cuidado e contenção da epidemia de HIV e aids em todo o Brasil, além de toda a desinformação veiculada sobre isso. “Nós precisamos de várias frentes, é muito importante que nós possamos conversar nas escolas sobre sexualidade e sobre a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis, de uma maneira inclusiva e não assustadora”, destaca Angela. Há uma necessidade urgente de assegurar que as populações-chave sejam plenamente incluídas nas respostas à aids e que os serviços sejam disponibilizados a elas.
Acesso ao tratamento
No Brasil, é possível notar menores investimentos nas políticas para diminuição da epidemia de HIV e aids nos últimos anos. Apesar disso, a médica ressalta que os remédios que tratam o HIV são gratuitos no País, então, se a pessoa que vive com HIV ou aids consegue realizar o diagnóstico e tem condições de chegar ao serviço de saúde, ela vai receber o remédio.
A organização dos Estados e municípios também influencia, assim como o quanto eles conseguem se organizar para informar suas demandas e necessidades de tratamento para que o Ministério da Saúde encaminhe o medicamento e os testes. Angela diz: “É necessária uma melhor captação das regiões distantes dos grandes centros para que essa medicação chegue ao seu destino”.
Os serviços de saúde precisam ser melhor articulados internamente. Atualmente, a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição ao HIV) é uma possibilidade interessante de prevenção, pois consiste em utilizar medicamento anti-HIV de forma programada para evitar uma infecção caso ocorra uma exposição. A medicação é disponibilizada de forma gratuita pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
Além disso, o treinamento e capacitação são muito necessários. “Nós temos pouco incentivo para que isso aconteça e precisamos diversificar a rede para que os serviços sejam capazes de se organizar para prestar o serviço, que é disponível por lei, assim como a capacitação das equipes e a disponibilidade de serviços”, afirma a médica
Ela também menciona que a educação e a comunicação podem ser fundamentais nesse processo, realizando um trabalho massivo para a diminuição do estigma e preconceito contra a doença. “Capilarizar e difundir a informação e recursos à população mais vulnerável ou mais distante dos grandes centros devem causar um impacto grande na diminuição de novos casos e no controle da pandemia. No entanto, é preciso muito investimento para que esse processo aconteça, não adianta querer que todos migrem para os grandes centros para receberem o tratamento, porque não é assim que funciona.”
Fonte: Jornal da USP