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Teatro

Musical Madame Satã estreia no mês de agosto em Salvador

Genilson Coutinho,
29/07/2018 | 10h07
Um dos representantes mais ilustres da malandragem da Lapa boêmia da primeira metade do século XX. O personagem reúne, ainda, traços que o inserem em outras categorias, tais como negro, homossexual e marginal. Este é um brevíssimo perfil de João Francisco dos Santos, mais conhecido como Madame Satã.
Este mito carioca é a personagem do próximo espetáculo de Thiago Romero, “uma espécie de desmonte poético-musical sobre a glória e a vida marginal de Madame Satã”. A montagem Madame Satã estreia no dia 02 de agosto e fica em temporada no Teatro Martim Gonçalves até o dia 12 do mesmo mês, de quinta-feira a sábado, às 20h, e domingo, às 19h.
Com dramaturgia de Daniel Arcades, coreografia de Edeise Gomes e direção musical de Filipe Mimoso, o espetáculo busca desvendar um complexo processo em que se imbricam a apropriação (e ressignificação) simbólica do malandro e a aplicação de estratégias biopolíticas sobre os corpos “fora da norma”.
Diferente dos musicais aos modos da Broadway e atuais musicais brasileiros, que focam em cantores, Madame Satã é uma biografia musicalizada, que pensa a música como instrumento de debate e discurso da negritude. Apesar de ter um caráter biográfico, o musical não tem um compromisso de contar cronologicamente a vida da personagem Madame Satã.
“A dramaturgia da peça foi criada a partir das situações relatadas pelo próprio Madame. Não estamos nos baseando em factoides, mas em relatos e entrevistas que o Madame concedeu. Buscamos ouvir a voz dessa personagem mito carioca”, explica Daniel Arcades.
O ator Sulivã Bispo dará vida a Madame Satã, um sujeito negro, homossexual, com diversas passagens pela cadeia e taxado de malandro durante toda sua história e com tantas dissidências da normatividade, uma dramaturgia correspondente a esta história necessita de um pensamento aliado a marginalidade da cena à história contada e aos ritmos musicais presentes.
As composições criadas para o musical estão inscritas e escritas no ritmo do funk, da percussão, no samba do início do século XX (quando ainda era um ritmo criminoso), com a métrica de sambas populares. O objetivo principal da montagem é transitar pelo percurso de Madame Satã e promover uma reflexão sobre o poder de instrumentalização do corpo, tendo como horizonte a produção de subjetividades contemporâneas.
O espetáculo, que tem como base a poética do Teatro Documental e traz 13 atores em cena, não rompe totalmente com o caráter representativo de obras biográficas, na medida em que se baseia em uma “história real”. “Madame Satã desdobrar-se em incontáveis versões. Esta talvez seja a principal característica dele. Satã não foi. Satã é e está em constante devir”, descreve Romero.
“Dar voz a personagens históricos e/ou literários que, de alguma maneira vivenciaram a difícil tarefa de ser ou declarar-se homossexual no Brasil, significa problematizar e refletir através desse espetáculo os padrões sociais e culturais que se propagam e se perpetuam dentro de nossa sociedade”, acrescenta o diretor.
A escolha pelo ator surgiu quando Romero o assistiu em ” Troilus e Créssida“, dirigida por  Márcio Meirelles, montagem do curso livre teatro da UFBA, em 2014. “Tive uma sensação muito parecida de quando assisti Lázaro Ramos no filme do Karin Aïnouz. Sem fazer comparações. Pensei: O dia que eu montar Madame Satã ele que vai fazer!”, recorda.
Sulivã Bispo comenta que tem uma relação muito profunda com o trabalho da Madame Satã e que ela “aparece na minha vida desde sempre”. “Percebo que, às vezes, ele tem uma energia muito parecida com a que eu acesso para construção de outros personagens. A vitalidade e a representatividade que ele tem na cena e no palco trago muito em mim”, explica.
O intérprete comenta que as maiores dificuldades para dar vida a esta personagem são as vivências e o tempo que são muito diferentes. “Madame Satã teve vivência em lugares como bordéis, cabarés, prostíbulos, noites que eu não tive ainda. Mas, busco ter, pois corpo é memória”, pontua.
Similaridades? Muitas. Dentre elas, o fato “nos sentimos na obrigação como artistas pretos, jovens, homossexuais e periféricos de falar sobre isso nos nossos discursos, nos espetáculos e nos nossos corpos. Ter a consciência e esse entendimento o que é bom para mim e para meu povo, do que é necessário para ambos, e o Madame Satã sempre lutou para isso”.
Bispo e Romero já trabalharam juntos nos espetáculos Rebola (premio Braskem de Teatro 2016 na categoria Espetáculo Adulto e Texto)KaialaAnoitecidasDelicado e mais recentemente no Frases de Mainha. “Com o tempo fomos nos afinando e tendo uma relação muito potente para além da cena. Sulivã é aquele ator jovem que tem uma potência muito boa para se trabalhar e um posicionamento político muito consistente. Aprendo muito com ele. Trocamos muito”.
Com recurso financeiro irrisório, o espetáculo – pré-formatura de Thiago Romero pela Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. “Montar sem recurso é muito difícil, por conta da estrutura do espetáculo e da quantidade de profissionais envolvidos. Mas, a Madame me fez lembrar das rodas de samba, dos batuques na casa de Tia Ciata, das rodas de Jongo na serrinha, do cais do Valongo, do Curuzu, da Feira, do Candomblé”, enfatiza Romero.
Mas, afinal, quem foi Madame Satã?
Esta é uma pergunta que o diretor Thiago Romero e o dramaturgo Daniel Arcades fizeram incontáveis vezes ao longo da pesquisa para o espetáculo. A análise de textos e obras, que vão dos discursos oficiais da primeira metade do século XX, imprensa vinculada à contracultura dos anos 70 e ao cinema produzido do início do século XXI, revelou parte das estratégias discursivas que procuraram lidar com seu caráter desviante.
Madame Satã é uma personagem que se desdobra em incontáveis versões. Na maior parte dos documentos, ela é apresentada de forma que a combinação negro, homossexual e marginal seja sempre ressaltada. Assim, aspectos físicos e comportamentais se misturam durante o exame de sua “personalidade” dita criminosa. Destaca-se, em particular, a definição da pederastia como um vício ou patologia, utilizada para acrescentar traços criminosos ao indivíduo.
A valentia passou a ser também um traço marcante do personagem. À primeira vista percebesse o estabelecimento de uma relação dicotômica valente/pederasta, com o uso de termos como “apesar de” e “, entretanto”. Aos poucos esta oposição se revela como instrumento de uma estratégia de poder, para lhe conferir um caráter ainda mais doentio.
“Mergulhar na história de Satã é perceber o quanto nós bichas pretas somos silenciadas na história deste país. Falar de Madame Satã é tão atual que sempre me vem aquela sensação violenta de que precisamos avançar muito ainda”, pontua o diretor, ao realçar que estamos em um momento muito difícil do país, principalmente, no que se diz respeito a saúde, cultura e educação.
“Uma onda conservadora e silenciadora se instaurando. Tantas Violências. Tantos discursos de ódio e intolerância. Mas precisamos continuar existindo, né? E de alguma forma (re)existindo. Acho que o momento é importante dar voz ao Satã, um corpo que avançou como potência política apesar de tantas ações para silencia-lo”.
Entretanto, Romero ressalta que Madame Satã é um mito nacional que já foi personagem de filme, espetáculo e outros trabalhos artísticos. “Quem conta um conto aumenta um ponto, assim dizia minha vó. Estamos contando uma história que já foi contada de muitas formas. Mas, o frescor vem dos olhares que se pode ter na trajetória do Madame”.
Rio de Janeiro
Natural da cidade de Volta Redonda (RJ), Thiago Romero viveu oito anos na cidade do Rio de Janeiro e fala que foi nesse período – dos 17 aos 26 anos – que iniciou a ideia de fazer um espetáculo sobre Madame Satã. “Frequentava muito a Lapa. Via muitas pessoas mais velhas falando dele. Talvez eu tenha guardado essa ideia por muito tempo esperando o momento em que me sentiria mais seguro para mergulhar na história dele”.
Ele recorda que, uma certa vez, encontrou uma senhora que deveria ter mais ou menos uns 60 anos que frequentava a roda de jongo nos arcos da Lapa e ela contava ter conhecido a Madame. “Gostava da maneira que ela falava sobre Satã. Aí pensei: Um dia ainda faço uma peça a respeito dele”, lembra Romero, ao acrescentar que o musical é um retorno às suas origens.

Madame Satã faz parte de uma pesquisa de linguagem desenvolvida pelo diretor Thiago Romero. “Em Madame Satã me debruço novamente no biográfico, na pesquisa da representação do Homossexual na cena, porém escolhendo pela primeira vez uma personagem pública como possibilidade de refletir sobre as questões humanas que a chamada história oficial deixa de lado”, descreve.

FICHA TÉCNICA
Concepção e Direção: Thiago Romero
Texto: Daniel Arcades
Elenco: Sulivã Bispo, Thiago Almasy, Anderson Danttas, Silara Aguiar, Genário Neto, Antenor Azevedo, Victor Corujeira, Daddi Lima, @caiquecopque, Gleison Richelle, Nitorê Akadã, Larissa Libório, Diogo Teixeira
Direção Musical e Trilha Original: Filipe Mimoso
Músicos: Filipe Mimoso, Paulo Pitta, Weslei Gomes
Direção de Movimento e Coreografia: Deise Gomes
Assistência de Coreografia: Elivan Nascimento e Issis Carla
Cenário: Erick Saboia
Figurino e Maquiagem: Tina Melo
Figurinista Assistente: Guilherme Hunder
Luz: Allison de Sá
Orientação de Encenação: João Sanches
Assessoria de Comunicação: Thèâtre Comunicação | Rafael Brito
Vídeos: Mayara Ferrão
Direção de Produção: Luiz Antônio Sena Jr.
Produção Executiva: Bergson Nnunes
Realização: Teatro da Queda